Decreto de Bolsonaro beneficia empresa de Salim Mattar

Secretário de Desestatização é sócio de locadora de veículo, atividade liberada na pandemia por ser considerada essencial pelo presidente

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Brasília

Um decreto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) favoreceu uma empresa da família de Salim Mattar, secretário de Desestatização e Privatização. Ele é sócio da locadora de veículos Localiza.

Bolsonaro liberou o funcionamento normal do ramo durante a pandemia do coronavírus por considerar o aluguel de veículos uma atividade essencial. A medida está em vigor desde quarta-feira (29).

Bolsonaro já editou dois decretos sobre atividades essenciais, ampliando a lista. A locadora fundada pela família de Salim é a principal empresa do setor e foi beneficiada pelo segundo.

Consultado, Salim afirmou não ter participado das discussões sobre as atividades essenciais. Segundo ele, a legislação vigente caracterizaria qualquer interferência como conflito de interesses.

A Presidência da República não quis comentar.

Salim Mattar, secretário de Desestatização e Privatização - Amanda Perobelli - 29.jan.2020/Reuters

Pessoas que participaram dos debates na Economia afirmam que a lista passou pelas mãos de secretários próximos a Salim. Entre eles está Carlos da Costa (Produtividade, Emprego e Competitividade).

Só depois disso as atividades consideradas essenciais foram encaminhadas à Casa Civil para a edição do primeiro decreto. Esse texto assinado em 20 de março deste ano.

Naquele momento, Bolsonaro liberou poucas atividades. A equipe econômica já tentava ampliar o universo de empresas contempladas, preocupada com o impacto da paralisação generalizada.

O transporte de passageiros por aplicativo, como Uber, 99 e Cabify, foi considerado essencial. O ministério então tentou incluir locadoras na lista. Boa parte da frota dos aplicativos é alugada.

Entidades que representam o setor de locação, como a Anav, enviaram ofícios a Bolsonaro pressionando pela inclusão. A Localiza integra a associação.

O setor tem cerca de 10.800 locadoras espalhadas pelo país. Elas empregam 75 mil trabalhadores.

O novo decreto, do dia 29, no entanto, excluiu o transporte via aplicativos da lista. Isso porque, por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), caberá a estados e municípios decidirem o que fazer no que se refere a transportes.

No entanto, o Supremo também decidiu que é competência da União definir quais devem ser os serviços essenciais.

Bolsonaro já incluiu igrejas e lotéricas nessa lista e, para mantê-las fechadas, lideranças políticas entraram com ações específicas questionando o decreto.

Para manter fechadas as locadoras de veículos, prefeitos, governadores, procuradores ou lideranças político-partidárias terão de recorrer ao Supremo, segundo assessoria do tribunal.

Empresas como a Uber informaram acionistas de que a demanda por viagens caiu mais de 70%. Isso não justificaria que motoristas de carros alugados continuassem em atividade por causa dos custos.

Essa situação foi discutida pelo ministério. Técnicos consideraram que não haveria motivos para a inclusão das locadoras.

O ideal seria contemplar os motoristas de aplicativos com a ajuda de R$ 600 do auxílio emergencial. Mesmo assim, as locadoras foram incluídas na lista.

Na pasta da Economia, Salim tem o papel de defender o "estado mínimo" e o investimento privado em alinhamento com a agenda liberal do ministro Paulo Guedes (Economia).

Segundo a Bolsa, o secretário continua como um dos principais acionistas da Localiza com 5,51% dos papéis com direito a voto. Ele tem também direito a receber lucros e dividendos.

A Folha pediu que analistas de mercado calculassem a participação a que o secretário teve direito com base nas informações divulgadas pela própria companhia aos acionistas.

O valor pago neste ano foi de R$ 3,9 milhões. Em 2019, Salim recebeu R$ 12 milhões, diluídos em três pagamentos ao longo do ano —maio, agosto e novembro.

Em 2018, quando o empresário ainda fazia campanha para o então candidato à presidência Bolsonaro, os dividendos totalizaram cerca de R$ 6,9 milhões.

A Localiza só opera com ações que dão direito a voto nas assembleias e a maior parte dos papéis (73%) está pulverizada no mercado.

Por meio da assessoria de imprensa, Salim afirmou ter se desvinculado de suas empresas em dezembro de 2018.

"Sua nomeação foi submetida à apreciação da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, que avaliou critérios como patrimônio e situações de potencial conflito de interesse", disse a nota.

"O secretário atendeu a todos os requisitos exigidos e foi nomeado em 10 de janeiro de 2019", disse a assessoria.

Questionado sobre os ganhos de lucros e dividendos, a assessoria de Salim afirmou que a Lei do Servidor Público permite que ele seja acionista de empresas. É vedada a gerência ou a administração.

O ex-presidente da Comissão de Ética Pública Mauro Menezes discorda.

Segundo ele, Salim é um servidor de caráter especial pelo cargo que ocupa. Por isso, ele também responde pela Lei de Conflito de Interesses.

"Essa lei tenta barrar situações em que, direta ou indiretamente, o servidor pode enfrentar, ou vir a enfrentar, choque entre o interesse público e privado", disse à Folha.

Para Menezes, a empresa controlada pela família de Salim se beneficia de uma decisão tomada pelo presidente da República, a quem Mattar apoiou durante a campanha e possui interlocução direta.

"Há que se ver se ele fez doações de campanha ao presidente ou integrantes do governo", disse.

"Existe uma relação prévia direta com Bolsonaro que não pode ser desprezada. Evidente que todas as locadoras se beneficiaram [com o decreto], mas a Localiza é a maior e hoje seu ex-controlador está no governo", afirmou Menezes.

O ex-presidente da comissão disse que, durante o governo Michel Temer (MDB), o então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, pediu orientação sobre o que fazer porque tinha dividendos de exercícios anteriores à sua posse no cargo a serem pagos e ele tinha dúvidas se poderia recebê-los.

Meirelles optou por não receber dividendos devidos enquanto estivesse no governo, ainda segundo Menezes.

O então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, e o ex-presidente Michel Temer - Evaristo Sá- 2.ago.2020/AFP

"O Eduardo Guardia [que sucedeu Meirelles] criou um fundo que administrava seus recursos oriundos de ganhos anteriores da iniciativa privada para que só fossem usufruídos quando ele deixasse o cargo", afirmou.

Guardia não tinha ingerência sobre o fundo.

Segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Salim doou quase R$ 3 milhões a campanhas.

Diversos integrantes do governo, como Onyx Lorenzoni, ex-ministro chefe da Casa Civil e atual ministro da Cidadania, e Rogério Marinho, ex-secretário especial de Previdência do Ministério da Economia e atual ministro do Desenvolvimento Regional receberam doações de Salim, que à época comandava a Localiza.

Candidatos do então partido de Bolsonaro, o PSL, também, receberam recursos. O atual presidente não foi financiado pelo empresário.

OUTRO LADO

Por meio de sua assessoria, a Localiza afirma que o secretário de desestatização não interferiu em seu nome junto ao governo.

"A empresa é apartidária, de capital aberto, e possui altos níveis de governança e as mais rígidas práticas de compliance, transparência e ética. Salim Mattar desligou-se da administração da Companhia no dia 13 de dezembro de 2018 quando renunciou ao cargo de Presidente do Conselho de Administração para ocupar uma posição no Governo Federal", disse a empresa em nota.

A companhia informou ainda que o diálogo com o poder público sobre a atuação do setor durante a pandemia foi feito por meio das associações que representam o setor (Anav, Abla e Fenaloc).

"Antes do decreto federal ser promulgado, diversos entes da federação, como Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo, Sergipe, Distrito Federal, dentre outros, já haviam reconhecido o aluguel de carros como atividade essencial no contexto da pandemia."

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