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Coronavírus, o debate econômico

Governo parece não estar equipado para combinar saúde pública e proteção da privacidade

Decisão da ministra Rosa Weber evidencia incapacidade institucional e a ausência de mínimos cuidados técnicos

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Ivo da Motta Azevedo Corrêa

Na sua última coluna aqui na Folha, Cecilia Machado fez uma dura crítica à aplicação da legislação de proteção de dados pessoais durante a pandemia causada pela Covid-19. Em suas palavras, "o trade-off entre privacidade e vidas é evidente".

Seu texto foi motivado pela recente decisão da Ministra Rosa Weber que suspendeu a entrega de dados cadastrais (nome, CPF e endereço) pelas empresas de telefonia ao IBGE, conforme determinava a MP 954. Gostaria de propor uma perspectiva adicional para contribuir com o debate deste tema.

A pandemia surgiu em um momento crucial para o debate da privacidade e da proteção de dados no Brasil. Nossa primeira lei estruturante sobre o assunto foi aprovada em 2018, mas até hoje não pode ser aplicada —sua entrada em vigor já foi adiada duas vezes. Pior: nossa Autoridade Nacional de Proteção de Dados, também criada em 2018, não foi instalada até hoje.

Um das consequências é que o governo brasileiro não parece estar equipado para combinar promoção da saúde pública e proteção da privacidade.

Ministra Rosa Weber em sessão da Corte no YouTube - Reprodução

Um exemplo disso é a tal MP 954: antes mesmo de qualquer manifestação do STF, a Anatel —agência que regula o setor de telecomunicações— enviou ao IBGE uma série de recomendações para o uso responsável dos dados que seriam compartilhados. O IBGE as ignorou solenemente e tentou acelerar a obtenção dos dados, antes mesmo que o Congresso pudesse analisar a proposta.

Outro exemplo foi o anúncio da primeira iniciativa federal de uso de dados (também fornecidos pelas empresas de telefonia) para monitoramento do nível de adesão ao isolamento social. No curso de dois dias, tivemos três posições oficiais distintas sobre suas implicações para a privacidade dos brasileiros —vindas de dois Ministros e do presidente da República.

Nesse sentido, a decisão —ainda provisória— da ministra Rosa Weber evidencia essa incapacidade institucional e a ausência de mínimos cuidados técnicos. Não há, portanto, uma escolha a ser feita entre privacidade e saúde. É possível —e necessário— preservá-las simultaneamente.

De fato, o que temos visto em lugares como União Europeia, Canadá, Singapura ou México é as autoridades de proteção de dados publicando recomendações nesse sentido —nunca buscando a proibição da utilização de dados ou tecnologia, mas o uso responsável e mitigação de eventuais riscos.

Por fim, dois lembretes fundamentais. Primeiro, o sucesso da maior parte das tecnologias empregadas no combate à pandemia depende da adesão das pessoas. O respeito à privacidade será crucial para conquistar a confiança dos cidadãos.

Além disso, situações emergenciais como a que vivemos exigem medidas excepcionais. Contudo, a história nos ensina que essa excepcionalidade nos obriga a ser ainda mais cautelosos com a proteção de direitos fundamentais. Como nos lembram os programas de vigilância ilegal inaugurados após a tragédia do 11 de setembro nos EUA, crises são frequentemente utilizadas como pretexto para promover amplas violações de direitos. E que as crises sempre passam, mas seu legado permanece.

Ivo da Motta Azevedo Corrêa

É sócio do escritório Xavier Vasconcelos Valerim Corrêa De Paula Advogados e professor do Insper

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