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Novo livro de Vargas Llosa mostra papel empresarial em golpe de Estado na América Latina

Obra de nome pouco atraente sobre a Guatemala dos anos 1950 merece ser lida por expor tristes semelhanças com o presente

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São Paulo

Um oficial golpista do Exército, sem apreço pelo conhecimento e limitado intelectualmente, chega ao poder, mas é consumido por paranoias e manias de perseguição que se transformam em uma profecia autorrealizável.

São tantas as ditaduras latino-americanas que se encaixam nessa descrição que o leitor dificilmente a associará à história do coronel Carlos Castillo Armas, que deu golpe de Estado em 1954 na Guatemala.

As medíocres ascensão e queda de Armas, assassinado em 1957 em um crime até hoje não solucionado, são o pano de fundo de “Tiempos Recios” (Tempos Difíceis, ainda sem tradução), a mais recente obra de Mario Vargas Llosa.

No livro, o escritor peruano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura volta a explorar as origens e os deletérios efeitos de governos autoritários, temas recorrentes em sua produção literária.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa durante lançamento da obra, em Madri 
O escritor peruano Mario Vargas Llosa durante lançamento da obra, em Madri  - Pierre-Philippe Marco - 8.out.19/AFP

Em 330 páginas, Vargas Llosa mostra ao leitor o papel crucial da multinacional United Fruit Company na arquitetura do golpe, que foi também organizado pelo governo Eisenhower e executado com ajuda do ditador dominicano Rafael Trujillo.

Não se trata, porém, de um livro-reportagem. Os fatos históricos bem documentados são apresentados em meio a personagens fictícios ou de fato reais, embora com nomes trocados.

Entre os fatos comprovados, chama a atenção o peso dado pelo autor à multinacional bananeira. Vargas Llosa expõe como a United Fruit concentrou terras na Guatemala e criou um monopólio na produção da banana, produto de cuja exportação a frágil economia guatemalteca dependia.

A empresa latifundiária agiu de maneira coordenada em todo o Caribe. Por meio de subornos e outros atos de corrupção, construiu um império econômico e consolidou nos países em que atuou as chamadas repúblicas das bananas, expressão que o autor não cita no livro, de propósito.

A empresa e seu método pouco republicano de atuação serviram de inspiração também a Gabriel García Márquez. No clássico “Cem Anos de Solidão”, a multinacional leva prosperidade econômica, exploração e, por fim, morte, ao fictício povoado de Macondo.

Logo no início de “Tiempos Recios”, Vargas Llosa apresenta ao leitor dois personagens coadjuvantes, embora relevantes: o magnata Samuel Zamurray, dono da multinacional, e o publicitário Edward Bernays, braço direito do empresário.

Bernays tem uma aparição marginal na obra, mas é mostrado como a mente pensante que buscou vender à opinião pública americana a ideia de que Jacobo Árbenz, o presidente da Guatemala recém-eleito, buscava implementar um regime comunista no país da América Central.

A acusação, falsa, tinha como base uma série de reformas que o novo presidente propôs já na eleição. A mais central, e que despertou a previsível oposição da United Fruit, foi um plano de reforma agrária.
A tese da inspiração comunista foi repetida à exaustão em meio à Guerra Fria e ganhou a repercussão necessária para mobilizar o governo americano.

Na história narrada no livro, Armas aparece como o candidato ideal a títere, ao mesmo tempo, do serviço secreto americano, da United Fruit e do general Trujillo, que tinha aspirações geopolíticas na Guatemala, o que se revelará posteriormente um erro de cálculo.

O coronel Armas é retratado por Vargas Llosa como um imbecil, mas resistente a deixar-se dominar. Em
um caso em que criatura se volta contra criador, passa a confrontar Trujillo, perseguir aliados e enxergar inimigos em todas as partes.

O escritor peruano adota no livro a versão de que Trujillo (personagem já retratado por Llosa em “Festa do Bode”) planejou o assassinato de Castillo Armas.

Na conspiração, estariam presentes a amante do coronel e um assassino contratado pelo ditador dominicano. Embora exista a hipótese de que essa conspiração tenha de fato ocorrido, ela nunca foi provada.

Uma das maiores qualidades do livro, para além de seu valor histórico, é um subliminar paralelo com a atualidade. Em entrevista recente à jornalista peruana Rosa María Palácios, Vargas Llosa deixou claro que vê mais similitudes do que gostaria entre esse passado e o presente.

Citou, por exemplo, a brasileira Odebrecht, cuja expansão internacional, como já revelado e admitido pela própria companhia, esteve alicerçada em pagamentos de suborno e doações de campanha não declaradas.

“Acho que teremos que fazer um monumento à Odebrecht, porque mostra de uma maneira contundente a profunda corrupção da realidade política latino-americana”, disse.

A acusação, quase sempre vinda de expoentes da extrema direita, de que todos os adversários são “comunistas”, voltou à moda, e é vista pelo autor como “um disparate”.

Defensor do que chama de liberalismo democrático, o peruano afirma, por exemplo, que o comunismo real está praticamente morto, uma vez que “países como Coreia do Norte, Cuba e Venezuela não servem de exemplo ou modelo para ninguém”.

“Tiempos Recios” não tem nome atraente, nem narrativa amena. Sua leitura vale sobretudo porque, ao contar a história de uma nascente democracia que morreu, mostra como e por que a traição e a mentira são regra quando a liberdade desaparece.

Tiempos Recios

  • Preço R$ 42,90 (ebook)
  • Autor Mario Vargas Llosa
  • Editora Alfaguara
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