Informar mais pobres de maneira incompreensível freia o desenvolvimento, diz Nobel de Economia

Michael Kremer, professor de Harvard, diz que crise do coronavírus pode servir como empurrão para uso mais intenso de tecnologias simples

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São Paulo

A informação transmitida de forma incompreensível para os mais pobres pode ser uma barreira maior ao desenvolvimento econômico do que a falta de tecnologia ou de interesse dos governantes.

Essas são algumas conclusões que o economista norte-americano Michael Kremer, professor da Universidade Harvard, tira de seu trabalho dedicado à avaliação de políticas públicas, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia ao lado de Esther Duflo e Abhijit Banerjee, em 2019.

Os três foram reconhecidos por mostrar que experimentos semelhantes aos testes da eficácia de remédios na medicina poderiam ser usados para mensurar o impacto de soluções para problemas como dificuldades de aprendizagem.

Michael Kremer é professor da cadeira Gates de Sociedades em Desenvolvimento do Departamento de Economia da Universidade Harvard; tem pesquisas em educação, saúde e agricultura; um dos vencedores do Prêmio Nobel de Economia de 2019, já foi nomeado um dos 50 pesquisadores americanos mais relevantes, recebeu bolsa de pesquisa da Fundação MacArthur e foi eleito Jovem Líder Global pelo Fórum Econômico Mundial - Harvard/Divulgação

Nos últimos anos, Kremer tem focado o desenvolvimento de mecanismos desse tipo para aumentar a eficiência de pequenos produtores rurais em países da África e da Ásia.

Assim como um estudo antigo do economista mostrou que livros didáticos são pouco úteis para alunos pobres se eles não entenderem seu conteúdo, suas pesquisas recentes indicam que muitos agricultores não compreendem a linguagem técnica de orientações oferecidas por governos.

“Houve um caso em que forneciam orientação com base no pH [nível de acidez] do solo. Bem, os agricultores podem não saber o que é pH e, certamente, não sabem qual é o pH do seu solo”, disse Kremer em entrevista à Folha.

Em parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), o economista trará, agora, para a América Latina ferramentas que testou em nações como Quênia e Índia.

Na semana passada, ele participou de uma agenda intensa de reuniões com representantes do IICA e de um debate online com Manuel Otero, presidente da instituição.

Nesses encontros, ressaltou que a crise do coronavírus pode servir como empurrão para o uso mais intenso de tecnologias simples, via celulares, na comunicação com pequenos produtores.

O vencedor do Nobel também está envolvido em uma iniciativa que busca convencer governos e empresas a investir pesadamente na busca por uma vacina contra a Covid-19 assim como em fábricas para a sua produção.

“Esse é um investimento que países de renda média também deveriam estar fazendo”, afirmou o Prêmio
Nobel de Economia.

Quais são os principais fatores que freiam o aumento da produtividade de pequenos agricultores em países pobres e em desenvolvimento?
Muito da pobreza no mundo está concentrada em áreas rurais. Há muitos fatores que impactam a renda na agricultura, como acesso à terra, educação limitada, mas também a informação.

Nesse contexto em que a tecnologia agrícola está mudando, seja pelo surgimento de novos meios de produção, novas pragas e mudanças climáticas, os fazendeiros precisam de acesso à informação e às melhores recomendações científicas.

Tradicionalmente, essa informação é fornecida por agentes de instituições oficiais de extensão [formação] rural, que visitam os fazendeiros pessoalmente. Esse é um canal muito importante, mas muito caro.

A maior parte dos fazendeiros tem telefones pelos quais conseguem pegar informações sobre as mais recentes evidências científicas, formatadas sob medida para os desafios particulares que afetam suas regiões, as sementes que estão usando, as condições meteorológicas, a época da safra.

Os celulares são uma ótima ferramenta para alcançá-los neste momento em que a Covid-19 nos dá um empurrão extra para usarmos as tecnologias disponíveis para interagir remotamente.


A linguagem da ciência é normalmente complicada, e, no meio rural, principalmente o mais pobre, há uma barreira educacional. Como resolver isso? 
Temos feito muitos trabalhos em países da África oriental, como Quênia, Etiópia e Ruanda, e, com outros colegas, na Índia e no Paquistão. Há abordagens que incluem mensagens de texto, dependentes do nível de alfabetização, mas outras que incluem mensagens de voz.

É possível ter sistemas pelos quais os fazendeiros recebem mensagens de voz e podem até escolher previamente os tópicos que lhes interessam ou preocupam, a língua que preferem.

Temos evidências científicas, com outros pesquisadores, dos ganhos enormes em termos de custo e benefício que eles podem ter com as tecnologias existentes.

Na conversa com Manuel Otero, o sr. disse que o trabalho dos economistas é buscar evidências e que caberia à ciência política responder sobre como governos reagem a elas. Os economistas não deveriam se preocupar com essa questão do convencimento dos governos também? 
Inicialmente, em minha carreira, acho que fui um pouco cínico demais sobre governos, o que pode soar estranho, porque, normalmente, as pessoas começam idealistas, aí deparam com a realidade nos governos e se tornam cínicas.

Mas, nesse caso da agricultura, descobrimos, muito consistentemente, que os governos normalmente são responsivos às evidências.

Bem, para ser um pouco cínico, acho que os governos têm interesse em agradar aos fazendeiros porque há muitos votos nas áreas agrícolas. Mas, se há algo barato, eles se interessam. Se é caro, talvez não.

Mensagens de celular são baratas. E acho que as pessoas nos ministérios da Agricultura realmente se importam, querem transmitir os conteúdos adequados. Mas os funcionários dessas áreas escrevem mensagens muito técnicas, que os fazendeiros têm dificuldade de entender.

Como vocês têm ajudado nisso?
Realizamos muitos grupos focais com os agricultores para descobrir que mensagens eles entendem. Muitos governos tinham dados que nos ajudaram também. Fomos testando ideias para descobrir o que funcionava.

Na Índia, o governo estava prestes a iniciar um programa de larga escala para distribuir informações para os agricultores sobre a qualidade do solo. Fizemos entrevistas com eles e descobrimos que não
entendiam esse conteúdo.

Estavam apresentando muita informação de forma complicada, mencionando unidades que os agricultores não conheciam. Então, trabalhamos com o governo para criar mensagens de telefone muito simples e isso aumentou dramaticamente a compreensão.

Não houve nenhuma resistência da parte do governo, uma vez que eles viram as evidências. Mas tenho certeza de que há outros temas em que é diferente, quando há muitos interesses financeiros envolvidos, corrupção ou algo mais.

Em um estudo antigo, o sr. descobriu que livros didáticos melhoravam o desempenho apenas dos melhores alunos. Pode haver um problema comum, de comunicação incompreensível, atrapalhando áreas diversas como educação e agricultura?
Sim. No trabalho muito inicial com o qual estive envolvido, descobrimos que o livro didático que o Ministério da Educação estava produzindo em escolas muito pobres, no Quênia, ajudava os alunos que já estavam entre os melhores, mas não os estudantes típicos.

Com o tempo, outros pesquisadores mostraram que não é que os alunos não conseguem aprender, mas que você precisa desenvolver materiais baseados no que já sabem. A partir daí, eles conseguirão alcançar os conteúdos mais avançados e progredir na aprendizagem.

Acho que, de fato, há uma analogia com a agricultura. Houve um caso em que o serviço de informação telefônica fornecia orientação sobre o que o agricultor deveria fazer com base no pH do solo. Bem, os agricultores podem não saber o que é pH e, certamente, não sabem qual é o pH do seu solo. Mas, se você desenvolver uma mensagem compreensível, ela terá mais impacto.

No Brasil, pequenos agricultores têm dificuldade em compatibilizar sua produção com o mercado consumidor. Mensagens de texto podem ajudar nisso?
No Quênia, uma empresa grande de açúcar deveria fornecer fertilizantes e sementes aos agricultores. Mas algumas vezes atrasava ou não fazia a entrega por problemas internos de administração. Então, criaram uma linha telefônica cujo objetivo não era enviar conteúdo aos agricultores, mas coletar informações deles. Isso levou a uma queda dramática nas falhas de entregas.

Há um estudo muito interessante de Robert Jensen que olhou o mercado de peixes. Com telefones celulares, os pescadores, ainda no mar, passaram a poder ligar para os mercados e descobrir os preços. Isso permitiu que ganhassem mais dinheiro e beneficiou também os consumidores. Haverá ganhos ainda maiores quando estivermos não só fornecendo informações mas indo além e as integrando, por exemplo, às cadeias de oferta.

Qual é sua expectativa em relação ao trabalho que fará na América Latina?
Já trabalhei na Colômbia, avaliando um programa educacional que fornecia recursos para crianças de áreas pobres irem para a escola secundária. Descobrimos resultados muito bons.

Já fui a conferências no Brasil, que é um país maravilhoso, mas não trabalhei ainda aí.

Minha impressão é que os governos têm dados muito bons na América Latina. Além disso, por serem países com renda média, e não baixa, mais recursos estão disponíveis, há economistas e especialistas em agricultura muito bons, que podem implementar as ferramentas adequadas.

O sr. está envolvido em discussões sobre a busca pela vacina contra o novo coronavírus. Como tem sido isso?
Obviamente, esse é um assunto-chave para o Brasil e para o mundo. Muitas vidas
estão sendo perdidas, e as perdas econômicas são da ordem de US$ 375 bilhões mensais. Se conseguirmos uma vacina semanas ou meses mais cedo, economizaremos bilhões de dólares.

Isso significa que vale a pena investir um montante enorme de recursos para tentar descobrir uma vacina e mesmo para instalar uma fábrica para sua produção antes de termos os resultados dos testes.

Claro que há o risco de você fazer a fábrica, o resultado da vacina não ser efetivo e parte do investimento ser perdida, mas o custo desse risco é muito pequeno relativo ao custo de não ter uma vacina.

Estou particularmente preocupado com a situação dos países de renda média. Em países como os Estados Unidos, já há parcerias com empresas farmacêuticas grandes para a produção. Os países de renda muito baixa, representados pela Gavi (entidade de disseminação de vacinas), levantaram recursos para isso também, pelo menos para a fase inicial.

Esse é um investimento que países de renda média também deveriam estar fazendo.

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