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Coronavírus, o debate econômico

Pelo iluminismo na economia: uma resenha de 'Consenso e Contrassenso' de André Lara Resende

Lara Resende critica a teoria econômica convencional e apresenta e analisa possibilidades econômicas para o Brasil

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Fábio Terra

Economista, professor da UFABC (Universidade Federal do ABC) e presidente da Associação Keynesiana Brasileira

Nos últimos anos, André Lara Resende vem questionando a teoria econômica convencional. Em "Consenso e Contrassenso: por uma economia não dogmática", publicado neste ano, o autor continua nesta seara e analisa as relações entre as políticas fiscal e monetária à luz da chamada Teoria Monetária Moderna (conhecida pela sigla de seu nome em inglês, MMT, de Modern Monetary Theory).

Instigado por ela, Lara Resende percorre dois caminhos na maior parte dos capítulos do livro. Primeiro, ele critica a teoria econômica convencional, fazendo uma genealogia da história do pensamento dela.

Segundo, apresenta e analisa possibilidades econômicas para o Brasil. Em outros capítulos, discutem-se o desalento social recente e os riscos democráticos decorrentes dos problemas econômicos. Há também um capítulo dedicado a uma sugestão inovadora, a plataforma digital nacional, uma ideia para desburocratizar o Brasil com base na tecnologia do blockchain.

Contudo, embora seja um livro de economia, escrito por um economista que o abre com uma introdução intitulada “Quarenta anos como economista”, Lara Resende soube localizar em um detalhe não econômico a moradia do diabo que ele deseja exorcizar: os dogmas econômicas e as narrativas sociais que rezam a fé neles.

Gabriel Cabral/Folhapress

Emissão de moeda causa sempre inflação? Não, mostra Lara Resende, ao descrever a atuação do Fed (o Banco Central americano) e os trilhões de dólares emitidos, ano após ano, desde 2008. Qual foi a repercussão inflacionária desta dramática injeção de dinheiro? Nenhuma. Idem para o Banco do Japão que, aliás, começou essa política ainda nos anos 1990: qual a inflação? Nenhuma: ao contrário, o Japão é uma economia deflacionária.

Analisa-se, então, outro dogma: o aumento da dívida pública pode não ser bom dado que suga recursos futuros da sociedade para financiá-la. Lara Resende rebate: a dívida pública é uma riqueza privada, a mais líquida e segura de todas. Há limite de riqueza desejado pelo setor privado? No que concerne à dívida pública, há apenas limites autoimpostos —necessários para se evitar oportunismos, mas tão rigorosos que são, na prática, imobilizadores.

Lara Resende aponta que há apenas três possíveis limites para a capacidade de gasto estatal. Por um lado, a capacidade de oferta da economia; por outro, a opção política da sociedade. Por fim, as convenções sociais prevalecentes —estas, por exemplo, explicam como as expectativas percebem socialmente o tamanho da dívida (e se, portanto, a questionam ou validam, pedindo maiores ou menos juros respectivamente).

Então, se a economia pode ter, em vários momentos, limites tão mais fluídos, por que os desafios econômicos continuam sendo os maiores problemas materiais da humanidade?

Por causa dos dogmas. Dos 7 capítulos da primeira parte do livro, 6 trazem em seus títulos a luta anunciada no subtítulo da obra e travada pelo autor a todo tempo: por uma economia não-dogmática. As palavras e termos nos títulos destes capítulos —ideias, consenso, contrassenso, armadilha conceitual, razão, superstição, dogmatismo, conservadorismo vitoriano— sugerem a batalha por um novo iluminismo econômico, em dois âmbitos.

Pelo lado da teoria convencional, para ela se olhar no espelho e perceber-se errada e apegada ao engano por dogma. Pelo lado da sociedade, para ela se abrir a quem, com base em uma narrativa diferente, lança luz sobre velhas crenças para as exorcizar.

Este último caminho é difícil, ainda mais no Brasil, descrente de si, com histórico recente de luta por estabilidade econômica, que saiu de uma de suas piores crises há três anos, estagnou-se por outros três e agora mergulha no que talvez seja sua pior recessão. Se diante do medo ateus rezam, esperemos, então, orações firmes ao velho dogma econômico diante de tão doloridos passado e presentes do país. Mas, se até ateu reza no medo, quem sabe se diante de cenário sombrio como o atual não haveria espaço ao novo?

E, mais do que nunca, nestes tempos de medo causado pelo novo coronavírus, o desalento generalizado sobre o Brasil e a confusão plena sobre o que é ser patriota pedem preces diferentes. É preciso reforma e eis o que faz Lara Resende. A superação do dogma da teoria econômica convencional, cuja vertente mais antiquada encontra trincheira nos formuladores da política fiscal brasileira, é fundamental para que na esteira do horror que já é a mortandade causa pela Covid-19 não tenham fim nossa jovem democracia e nosso delicado arranjo social.

A preocupação com o país, esboçada em todo o livro, é ainda mais evidente na parte 2, cujos 5 capítulos discutem questões variadas, sempre olhando o Brasil. Elas vão de moeda digital, passando pela plataforma digital nacional, por capital cívico, e chegando aos riscos à democracia decorrentes de problemas econômicos. Premonitório, Lara Resende escreve à página 178 “a revolução digital, a pulverização das identidades, a desmaterialização da economia e o fim do emprego industrial tornaram obsoletas a política das democracias representativas. (...) É bom que se tenha consciência disso, para não depositar esperanças infundadas nas eleições de 2018. Para recolocar o país nos trilhos, para dar fim ao desalento, não basta evitar radicalismos.”

No ensaio deste capítulo, de janeiro de 2018, o autor sugere, então, que se olhe para o futuro e que se deixe de ter o passado como um guia. O Brasil não fez isso. Continuou por todos os lados preso ao passado. Nas eleições de 2018, para evitar um passado recente escolheu um flerte com outro passado, autoritário. Assim, o custo do presente tornou-se alto demais para se olhar para o futuro. Mas, novamente a questão: quem sabe a crise atual abra espaço nos ouvidos da sociedade para que se narrem novos mantras?

Dos enunciadores de sempre do velho dogma, nada esperar. Em diálogo com Keynes, que abandonou o paradigma neoclássico nos anos 1930 (a velha teoria econômica convencional sempre em voga no Brasil) em que se formara e que ensinara por décadas em Cambridge, Lara Resende conclui que “a dificuldade não está nas novas ideias, mas em escapar das velhas, das formas arraigadas de pensar e de expressão. A influência da teoria econômica moderna é comparável à das religiões”, na página 156.

Por fim, faça-se justiça. O MMT não foi trazido ao Brasil por André Lara Resende —e ele não reivindica este mérito. Sua chegada no Brasil faz décadas, feita notadamente por economistas do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que inclusive levou e continua levando seus alunos a estudar com proeminentes contribuintes da MMT nos Estados Unidos. A teoria tem corpo forte de apoiadores atualmente, em diversas instituições universitárias brasileiras. Aliás, embora eu seja crítico costumeiro da MMT, entendo ser pelo menos este o momento dela. Contra velhos dogmas, que se entoe seu mantra.

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