UE põe acordo com Mercosul na geladeira à espera de melhor momento, diz consultoria

Mau desempenho brasileiro na proteção ambiental alimenta oposição ao tratado, e Comissão deve adiar tramitação do documento, segundo a Eurasia

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Bruxelas

A União Europeia colocou na geladeira o acordo de livre comércio com o Mercosul à espera de condições políticas mais favoráveis, afirma análise da consultoria Eurasia, uma das principais companhias de avaliação de risco político.

Segundo o diretor para a Europa da consultoria, Emre Peker, e o analista para o Brasil Filipe Gruppelli Carvalho, a desconfiança crescente de europeus de que o Brasil tenha compromisso com metas climáticas e ambientais estreitou as margens de negociação do acordo.

As conclusões vão na mesma direção de análises feitas à Folha por diplomatas e consultores que acompanham de perto os trabalhos nos dois blocos econômicos, e ganhou força com dados recém-divulgados de recorde de desmatamento na Amazônia.

“Para os europeus, a maior ameaça ao acordo é o presidente Jair Bolsonaro e sua desconsideração pela preocupação global com o fraco histórico ambiental do Brasil e o crescente desmatamento na Amazônia”, escrevem os analistas da Eurasia.

Para que um acordo comercial passe a valer na União Europeia, precisa passar por várias etapas, que começam na Comissão Europeia —Poder Executivo do bloco, responsável por escrever os regulamentos comuns europeus e negociar tratados comerciais.

Quando terminam as negociações, é redigido um documento do acordo, que precisa passar por revisão legal nos dois blocos e tradução para todas as línguas dos países membros antes de ser assinado. O acordo entre Mercosul e UE está na fase da revisão legal, e seus problemas mal começaram.

Uma vez assinado, ele se torna uma proposta oficial de acordo comercial, que precisa ser aprovada por agentes políticos em três níveis —e já há oposição explícita ao tratado em todos eles no lado europeu.

O acordo só vale se tiver unanimidade no Conselho Europeu (órgão que reúne os líderes dos 27 países membros) e maioria no Parlamento Europeu (705 eurodeputados formam o Legislativo da UE).

Também precisa passar pelos parlamentos nacionais e regionais (no caso de federações, como a Bélgica); se for reprovado em qualquer uma dessas instâncias, ele volta à estaca zero.

Neste momento, o governo da Áustria já declarou oposição ao acordo, o que impediria a unanimidade no Conselho. No mês passado, ministérios da Holanda e da França, um dos países mais poderosos do bloco, lançaram a proposta de endurecer as regras de controle ambiental nos tratados não assinados (caso do Mercosul).

Na análise da Eurasia, o principal fiel da balança será a França. “Dada a iniciativa de Paris de consagrar o acordo climático nos acordos comerciais da UE e impulsionar sua implementação, qualquer desvio dos compromissos do Brasil por Bolsonaro tornaria impossível a Macron apoiar o acordo”, afirmam eles.

A avaliação feita pelo governo francês depois que o texto estiver finalizado, que determinará a posição francesa, será um sinal importante, segundo os analistas.

No Parlamento Europeu, a Comissão de Comércio Exterior aprovou no dia 27 de maio uma moção de apoio a que o Acordo de Paris se transforme uma cláusula essencial dos tratados comerciais, o que facilita a retirada de benefícios comerciais por causa da alta de desmatamentos, como vem ocorrendo no Brasil.

Nas negociações, concluídas no governo Bolsonaro, o Brasil se comprometeu a seguir o Acordo de Paris para combater mudanças climáticas e reverter o desmatamento. “No entanto, com Bolsonaro defendendo as opiniões do presidente dos EUA, Donald Trump, sobre o clima e zombando do clamor internacional durante os devastadores incêndios florestais em 2019, os europeus estão perdendo a confiança nos compromissos do Brasil”, afirmam os analistas da Eurasia.

É por isso que vários atores europeus querem transformar o Acordo de Paris em cláusula essencial do tratado comercial, o que permite medidas concretas se houver desvios, como o aumento no desmatamento. O acordo comercial com o Mercosul, cujas negociações começaram há mais de 20 anos, reflete uma ideologia antiga e não deve ser ratificado em sua forma atual, defendem eurodeputados.

Além disso, partidos que já se opunham ao acordo com o Mercosul no Parlamento Europeu, como o Verde, redobraram as críticas depois da divulgação do vídeo de reunião ministerial em que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeria aproveitar a pandemia de coronavírus para para aprovar reformas infralegais, incluindo alterações ambientais.

A eurodeputada alemã Anna Cavazzini afirmou que aprovar o acordo elevaria “a pressão sobre a Amazônia e a política de Bolsonaro, que já viola todas as obrigações ambientais previstas no pacto".

Além de regras ambientais vinculantes, parlamentares querem a introdução de novas regras que garantam “cadeias de suprimentos mais transparentes, éticas e livres de desmatamento”, certificadas por empresas que operam na Europa.

À oposição no nível da União Europeia se soma a de deputados de três países até agora, nos quais maiorias Legislativas rejeitaram o acordo: na Áustria, na Holanda e na Valônia (região belga de língua francesa).

Para os analistas da Eurasia, outro determinante para as chances do acordo com o Mercosul são "medidas de Bolsonaro que corroem as promessas de clima e meio ambiente do Brasil, como um projeto de reforma agrária apresentado no mês passado, mas posteriormente retirado devido à falta de consenso.”

Segundo eles, tais ações, juntamente com um aumento de 55% no desmatamento da Amazônia neste ano e os riscos de incêndios florestais na estação seca, alimentarão a oposição à parceria com o Mercosul.

Os obstáculos do acordo comercial são principalmente políticos, já que os dois lados preveem ganhos econômicos. O pacto daria à UE acesso a um mercado consumidor de 260 milhões de pessoas em economias ainda bastante fechadas, e reduziria em mais de 4 bilhões de euros por ano impostos atualmente pagos pelos exportadores, segundo a consultoria.

A crise do coronavírus pode trazer um apoiador importante, a Alemanha, país mais poderoso da Europa que depende muito das exportações e assume em 1º de julho a presidência rotativa da União Europeia, o que eleva sua já forte influência nas discussões entre os membros.

“A UE também será guiada por seus interesses estratégicos mais amplos. Uma das principais prioridades será coibir a crescente presença da China, principalmente na Argentina e no Brasil”, avalia a Eurasia.

Segundo a consultoria, a UE quer concluir o acordo para expandir sua influência na região, em vez de “abandoná-la ao seu participante tradicional, os EUA”.

Se tudo fracassar, a UE poderia tentar separar o tratado de livre comércio do acordo mais amplo, o que permitiria ratificá-lo sem precisar dos Legislativos nacionais e regionais, segundo os analistas da Eurasia.

Essa seria uma ação de alto risco político para a UE, pois abriria um flanco para o ataque de populistas, eurocéticos (os que se opõem à participação de seu país na UE), ativistas anticomércio e agricultores que se consideram ameaçados pela concorrência sul-americana.

Por enquanto, avaliam os analistas, a UE tentará ganhar tempo. Quando o texto jurídico estiver finalizado, serão necessários cinco meses para traduzi-lo em todas as 24 línguas oficiais da UE e do Mercosul. As discussões no Conselho não devem começar antes de outubro.

“A esperança entre os muitos defensores europeus do pacto será que Bolsonaro não balance muito o barco nesse meio tempo”, diz a Eurasia.

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