Emergentes serão os perdedores no 'precaucionismo' pós-pandemia, diz Pascal Lamy

Segundo um dos principais especialistas em comércio internacional, 'trilhões despejados por países ricos' para combater crise do coronavírus vão provocar distorções

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Bruxelas

Os países em desenvolvimento serão os principais prejudicados pelo novo sistema de comércio internacional que vai emergir da crise do coronavírus, diz um dos principais especialistas no assunto, Pascal Lamy, 73, que dirigiu por 12 anos, em dois termos, a OMC (Organização Mundial do Comércio).

O político e economista francês prevê um período longo do que ele chama de “precaucionismo” —políticas dos países mais ricos para proteger suas populações de um encarecimento do risco provocado pela pandemia—, para diferenciar de protecionismo –proteção de empresas contra concorrência, na sua definição.

“Os trilhões e trilhões de dólares que serão despejados nas economias ricas e na China vão inevitavelmente distorcer a economia e o comércio internacionais [...] e dificultar muito o uso pelos países em desenvolvimento de suas vantagens comparativas”, disse Lamy ao comitê de eurodeputados encarregados de comércio exterior no Parlamento Europeu, em Bruxelas.

Pascal Lamy, 73, é economista; ele dirigiu por 12 anos, em dois termos, a OMC (Organização Mundial do Comércio) - Li Xin-24.mar.18/Xinhua

De acordo com estimativas divulgadas em junho, a União Europeia prevê que a pandemia derrube o comércio global em de 10% a 16% e a economia global em 3,5% em 2020, nas previsões da OCDE.

O impacto do coronavírus levou a União Europeia a adiantar para este ano uma revisão de sua política comercial que começaria só em 2021, providência necessária, segundo o economista, que já foi comissário de Comércio da UE e hoje é consultor e pesquisador dos centros de estudo European Horizons e Notre Europe.

No Parlamento Europeu, Lamy falou também sobre mais regras ambientais em tratados comerciais e a construção de um novo sistema de regras internacionais, que ele chama de polilateralismo.

Globalização diferente

"A Covid-19 vai elevar o custo do risco e isso altera a globalização por quatro vias:

  1. no médio prazo, vai se acirrar a rivalidade pré-pandemia de China e Estados Unidos e a desconexão de suas economias e seu comércio

  2. terá ainda mais impacto a distorção provocada pela China, um verdadeiro elefante branco no mercado capitalista internacional, com 30% de sua economia sob comando estatal, o que causa sérios problemas de coexistência

  3. o novo preço do risco fará com que todos os países, todos os que atores do comércio global, elevem suas precauções para proteger suas populações. Esse precaucionismo trará maior fragmentação dos sistemas regulatórios e mais dificuldades para elevar o “level playing field” [campo de jogo, ou patamar regulatório mínimo].

  4. a crise também expôs a extrema fragilidade de algumas cadeias de produção, e haverá a tendência de trazer de volta para seus países etapas dessas cadeias.

É preciso ter claro que isso tem custo. Se globalização é dolorosa, mas eficiente, a desglobalização é dolorosa e ineficiente."

Prejuízo para emergentes

"A globalização mais lenta e mais sustentável que surgirá desse processo deve ser positiva para os habitantes dos países mais ricos e negativa para os dos mais pobres.

Desacelerar o capitalismo global para conseguir mais resiliência econômica ao custo de menor eficiência tem o outro lado da moeda: mais precaução dificultará muito o uso, pelos países em desenvolvimento, de suas vantagens comparativas.

Os trilhões e trilhões de dólares que serão despejados nas economias ricas e na China vão inevitavelmente distorcer a economia e o comércio internacionais, e há um risco no curto prazo para o multilateralismo."

Polilateralismo x multilateralismo

"O multilateralismo, que já não vinha em boa forma antes da crise, corre o risco de reemergir ainda pior depois dela. A desigualdade entre leste e oeste, norte e sul terá crescido. Será preciso revisar o conceito de multilateralismo.

Para isso, temos que ir além do sistema vestfaliano [baseado no princípio do direito internacional de que cada estado tem soberania sobre seu território e assuntos domésticos] e passar do multilateralismo ao polilateralismo.

O primeiro é conduzido por Estados. Polilateralismo é conduzido por um espectro mais amplo de “stake holders” –sociedade civil, ONGs, empresas, instituições acadêmicas, os reais atores da vida internacional.

Queremos diversificar a governança global para que ela fique mais eficiente."

Padrão europeu

"Num mundo mais dividido, mais fragmentado e, em termos, mais perigoso, a UE precisa sustentar o mais bem regulado sistema multilateral, tentando segurar os EUA no barco e trazendo a China o mais perto possível.

Reforçar as regras globais não atende só os interesses europeus, mas os de muitos países em desenvolvimento que serão deixados ao relento se a OMC e o sistema global de comércio se enfraquecerem.

O mundo do comércio ficará mais competitivo e mais propenso a intervenções estatais, e em geral isso não será bom para países mais pobres. A Europa tem às suas portas um enorme continente, a África, e toda revisão de política comercial precisa levar em conta esse fator geopolítico e geoeconômico."

Comércio europeu

"A política comercial europeia precisa permanecer aberta, não por convicção ideológica, mas porque no médio e longo prazo seu crescimento será mais fraco e mais lento que o do resto do mundo.

Uma grande parte da demanda da União Europeia virá de fora, o que exige mercado aberto e comércio fluido.

A UE continuará o maior mercado do planeta, o que nos dá um cacife que provavelmente não temos em outras áreas internacionais."

Foco ambiental

"Pela forma como regula seus mercados a Europa tem capacidade de impor padrões à produção global. Quando eleva os requisitos ambientais de seus produtos, também aumenta os de todos que entram no bloco.

A UE tem que fazer uma política comercial cada vez mais verde. Este é um enorme passo que vem de uma evolução política, de uma pressão da opinião pública europeia que não tem comparação em outros lugares.

O instrumento para isso será o ajuste das fronteiras de carbono [um preço sobre o carbono cobrado de produtos importados produzidos em países com menos limites à emissão de gás carbônico].

Precisamos colocar o preço do carbono no nível de suas externalidades negativas [impactos negativos indiretos, como, por exemplo, os custos com saúde da poluição atmosférica].

É isso que fará com que o capitalismo global, gostemos ou não do sistema, se ajuste a um novo padrão de produção."

Ameaça chinesa

"O sistema da OMC sempre foi lutar por um equilíbrio delicado. De um lado da balança está a abertura comercial, o melhor caminho para crescimento e desenvolvimento justo. Reduzir obstáculos ao comércio é a função primordial da OMC.

Do outro lado da balança existe o reconhecimento pelo sistema internacional de que obstáculos podem ser erguidos em alguns casos muitos específicos, para proteger sua população, proteger ou ambiente ou renivelar o campo de jogo quando ele tiver sido alterado.

Esse balanço foi relativamente estável até ser alterado pela China, não quando entrou na OMC, em 2001, mas quando sua economia se agigantou.

A China pagou o maior preço de todos os países por sua carteirinha da OMC, e sua entrada foi incrivelmente proveitosa para todos. O superávit comercial chinês, que era 10% em 2001, agora é zero. Nos últimos 20 anos, as importações chinesas cresceram muito mais que suas exportações, o que é bom para os exportadores.

Mas ao crescer tremendamente, em vez de convergir para um sistema de mercado internacional regulado, a China manteve 30% de sua economia sob controle do Estado, levantando uma grande questão sobre apoio estatal, enquanto a capacidade de a OMC regular subsídios é cada vez mais fraca.

O conceito de neutralidade competitiva [garantir que empresas não se beneficiem, na concorrência, de vantagens indevidas devido à sua propriedade ou nacionalidade] precisa ser fortalecido e a China tem que entender que ou aceita uma maior disciplina sobre subsídios estatais ou não poderá usufruir da abertura comercial."

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