Mal sabia Furtado que os liquidatários do desenvolvimento ainda estavam por vir, diz professor da USP

Método de análise do economista foi abandonado mesmo pelos heterodoxos

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São Paulo

Ao escrever amargurado durante o governo de Fernando Collor, Celso Furtado mal sabia que os verdadeiros liquidatários do desenvolvimento ainda estavam por vir, afirma Alexandre de Freitas Barbosa, professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

O professor critica ainda o abandono do estilo de interpretação de Furtado, pautado numa análise histórico-estrutural, não só por economistas ortodoxos mas também por aqueles que se dizem desenvolvimentistas.

“Em seu último livro teórico, Furtado fala que qualquer discussão sobre desenvolvimento tem que fazer uma aproximação entre a teoria da acumulação, da estratificação social e da estrutura de poder. Ninguém mais pensa o desenvolvimento do Brasil dessa forma”, diz.

Celso Furtado fala em seminário em 1989; pesquisador multidisciplinar, dizia que a economia não tem todas as respostas para o desenvolvimento
Celso Furtado fala em seminário em 1989; pesquisador multidisciplinar, dizia que a economia não tem todas as respostas para o desenvolvimento - Luiz Carlos Murauskas/Folhapress

Veja trechos da entrevista concedida por Barbosa à Folha por telefone.

Furtado reconheceu que a industrialização não levava a uma superação do subdesenvolvimento, mas contribuía inclusive com o aumento da heterogeneidade estrutural e da desigualdade social. Como esse processo se dá hoje?
Para o Furtado, a industrialização era o principal meio para superar o subdesenvolvimento, mas nunca foi um fim em si mesmo. Era um meio junto às reformas de base, à reforma do Estado. Ele não inventou o modelo de industrialização por substituição de importações, como falam, mas viu como se deu nossa industrialização a partir de uma crise internacional. Ele mostra que essa ela é problemática, gera inflação e crise no balanço de pagamentos, é concentrada regionalmente e em termos sociais.

Qual é o papel da indústria hoje?
Houve uma mudança na configuração da economia-mundo capitalista, com a presença da China num quadro de boom de commodities, mas os setores com maior valor agregado ficaram cada vez mais fora do país. Isso para mim é mais grave que desindustrialização. A indústria é quase só montagem, virou importadora de tecnologia, a estrutura produtiva continuou obsoleta ou cada vez mais dependente em termos internacionais. Como reverter isso? Furtado serve para fazer essas indagações. É uma questão só de câmbio, como sugere o Bresser [Luiz Carlos Bresser-Pereira]? Ou preciso de novos acordos políticos e sociais? É preciso pensar os centros e periferias tendo estruturas sociais diferentes, e se conectando de maneira complementar e contraditória.

Quais são os centros dinâmicos desse sistema hoje? Como sua reconfiguração afeta a periferia?
Nós temos um cenário com três centros dinâmicos: EUA, China e Europa, essa já numa posição pericentral. São os centros financeiros e de fronteira tecnológica. A relação de complementaridade e contradição entre China e EUA reorganiza a redefine as possibilidades de tudo o que vem depois. Boa parte do que é produzido em termos industriais está na China, mas boa parte também do que é investido na África, Ásia e América Latina vem da China também. E os outros centros reagem a isso. Qualquer país para lidar com esse novo contexto precisa entender suas possibilidades a partir das interações entre eles. Seria possível por exemplo o Estado atuar junto com algumas dessas transnacionais, especialmente as chinesas, que estão sequiosas de ampliar seus investimentos, para formar joint-ventures com brasileiras? Governo Lula nunca tentou isso.

Por quê?
Faltou um diagnóstico do capitalismo brasileiro para toda a esquerda do PT em diante. Pra falar de desenvolvimento tem que entender que isso aqui é um capitalismo subdesenvolvido e dependente e o que isso significa, porque não é mais o que era antes. Quais foram as transformações, os dilemas e onde poderíamos chegar, isso nunca foi colocado pela esquerda do PT. Houve avanço grande no BNDES, nas políticas sociais, a primeira década dos anos 2000 vai virar um período áureo. Mas isso era só o início. A Dilma comprou a ideia de que país desenvolvido é país sem pobreza. Aí depois do golpe de 2016 as pessoas “perceberam” que o Brasil é um país com 400 anos de escravidão, com latifundiários, com elites… Obviamente tinha sentido essa euforia, trouxe dividendos políticos, quatro eleições, mas faltou a veia crítica e utópica.

Olhando para a política econômica atual, que papel o Brasil passa a ter na dinâmica centro-periferia?
As pessoas que estão no governo [Jair Bolsonaro] hoje não têm nenhum objetivo, senso de realidade nenhum, sequer são teóricos. O Furtado, no livro “A Construção Interrompida” [de 1992], tem uma nota introdutória muito amarga, escrita durante o governo [Fernando] Collor, falando dos “liquidatários do desenvolvimento”. Mas eu diria que esse pessoal, o Collor e especialmente o Fernando Henrique Cardoso, eles pelo menos utilizavam o termo desenvolvimento. Eles queriam substituir por um outro modelo. Furtado não imaginava que os liquidatários do desenvolvimento ainda estavam por vir. O governo atual não tem estratégia, projeto. Atacam a China, destroem o meio ambiente. Não acho que existe qualquer tipo de visão geopolítica. No golpe militar de 1964 o objetivo era desenvolver as engrenagens do capitalismo brasileiro, agora não existe perspectiva de desenvolver nada, é aumentar a rentabilidade, fazer terra arrasada e pronto. Eles não pronunciam a palavra desenvolvimento.

Ainda é possível a superação do subdesenvolvimento?
Eu fico me perguntando se sequer há possibilidade de existência de algo como nação. Furtado falava em nexos de solidariedade econômica. Eu não sei se existem esses nexos entre os vários setores que compõem o território nacional. Eles estão interligados a diferentes dinâmicas de acumulação predadora. Isso pode até dar em algum crescimento econômico aqui e acolá, mas o cenário é o do ornitorrinco do Chico de Oliveira: acumulação truncada, desigualdade irremissível, ele só esqueceu de colocar um Estado e uma sociedade autoritários.

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