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Economia em debate

A Folha da Faria Lima

Colunista e ex-ministro responde editorial publicado nesta Folha na sexta (21)

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Nelson Barbosa

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research

A opinião da Folha reflete o pensamento preponderante na cidade de São Paulo, hoje muito influenciado pela “Faria Lima”, aquela pequena comunidade de 100 mil a 150 mil pessoas cuja vida gira em torno do mercado financeiro.

Tivemos exemplo da lógica “farialimer” no editorial “Jair Rousseff”, que tentou equiparar Bolsonaro a Dilma. Nossa ex-presidente já respondeu à Folha na política, apontando o absurdo de igualar uma liderança democrata com um presidente de viés autoritário. Neste texto, tentarei responder ao editorial na economia.

Em primeiro lugar, a Folha exagera ao dizer que Dilma gastou sem limite. Houve expansão fiscal? Sim, houve, sobretudo em 2012-14, mas não muito diferente do ocorrido em outros governos.

Quando se trata de uma razão, numerador e denominador importam. Traduzindo do economês, quando a economia desacelera, o gasto do governo pode crescer mais lentamente do que no período anterior e, ainda assim, subir em proporção do PIB. Foi assim na comparação entre o primeiro e o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Foi assim na comparação entre o segundo mandato de Lula e o primeiro mandato de Dilma. O gasto primário desacelerou sob Dilma.

Nelson Barbosa, colunista da Folha, é professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016) - Bruno Santos/Folhapress

O gasto deveria ter desacelerado mais? Presumo que a Folha ache que sim, e esta é minha segunda crítica ao editorial. Em momentos de crise, um ajuste fiscal muito forte pode se autoderrotar derrubando o PIB. Ilustro novamente com um exemplo: o Brasil de 2015.

No início do segundo mandato de Dilma, fizemos forte ajuste fiscal, e isso foi um erro (sim, isso foi autocrítica). A economia não estava bem, e a combinação de colapso dos preços internacionais de commodities com os efeitos internos da Operação Lava Jato derrubou o nível de atividade econômica muito além do que era esperado, por governo e mercado, no início de 2015.

Naquele contexto, ao fazer forte contração fiscal e rápido realinhamento de preços de energia, o governo federal empurrou a economia mais para baixo. Era preciso fazer exatamente o contrário, Orçamento com déficit para estabilizar a economia, como Dilma acabou propondo na segunda metade de 2015, mas o Congresso só aprovou em meados de 2016, com Temer.

Assim como hoje, a Folha também pediu mais recessão em 2015. Felizmente, Temer ignorou o pedido e flexibilizou a política fiscal em 2016. Apesar do discurso de austeridade, houve forte elevação de despesa antes da implementação do teto de gasto. O déficit acabou sendo muito maior do que Dilma havia proposto, e isso ajudou a estabilizar economia no início de 2017.

A expectativa era que o PIB decolaria a partir de então, mas isso não ocorreu. Crescemos pouco, com quase estagnação do PIB per capita em 2017-19, tudo isso antes da Covid. Parte da estagnação veio da política fiscal, da decisão de promover consolidação fiscal prematura em uma economia que mal havia saído de uma grave recessão. Hoje corremos o mesmo risco, e essa é minha terceira crítica ao editorial da Folha.

Nosso debate sobre política fiscal frequentemente cai no maniqueísmo: “Teto de gasto versus gastança sem limite”. Quem acompanha o assunto sabe que existem regras alternativas para permitir elevação ou manutenção de alguns gastos necessários —como infraestrutura, saúde e educação— ao mesmo tempo que se controlam despesas não essenciais —como salários elevados de algumas carreiras.

Ao insinuar que toda e qualquer mudança do teto Temer gerará crise cambial e monetária, o editorial da Folha não ajuda o debate racional do tema. Precisamos de regra fiscal mais adequada à nossa realidade e devemos levar em conta que a economia pode não se recuperar rapidamente da pandemia.

Já apostamos na fada da confiança e no PIB privado em 2017-19, sem sucesso. Fazer isso novamente é arriscado, sobretudo quando milhões de famílias só não estão na pobreza devido ao auxílio emergencial de R$ 600 criado pelo Congresso.

O fato de até Bolsonaro se render à necessidade de manter um mínimo de transferência de renda e investimento deveria fazer a Folha refletir que, talvez, mais do que “impulso populista”, nossa elevada desigualdade de renda e grande carência de infraestrutura acabam empurrando qualquer governo para a realidade, para fora da bolha da Faria Lima.

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