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Autora aponta racismo nos EUA como consequência de sistema de castas opressor

Divisão das pessoas presas a uma hierarquia precede distinção de cor, e compreensão do fenômeno ajuda a entender tensões atuais, diz escritora

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Gillian Tett

Presidente do conselho editorial do Financial Times nos EUA

Financial Times

Três décadas atrás, Isabel Wilkerson, então repórter do jornal The New York Times, decidiu escrever “um artigo brincalhão sobre a Magnificent Mile [via de comércio sofisticado] de Chicago”.

Ela marcou uma entrevista com um executivo do setor de varejo e chegou na hora combinada —mas ele declarou que não podia atendê-la porque estava se preparando para “um compromisso muito importante com o The New York Times”.

“Trabalho para o New York Times”, rebateu Wilkerson.

Ele a descartou, acusando-a de se fazer passar pela repórter. O motivo? Wilkerson é negra e “pareceu não ocorrer a ele que uma correspondente nacional do The New York Times pudesse vir numa embalagem como a minha”.

Como explica Wilkerson, o incidente reflete o padrão dos preconceitos que ela enfrentou em sua carreira como repórter, em toda parte, dos ambientes empresariais a aviões e muitos outros lugares.

Ativista do Black Lives Matter protesta à frente de policiais em La Mesa, California - Bing Buan - 2.ago.2020/AFP

O momento também se enquadra ao tema de seu novo e oportuno livro: em 2020, os EUA não têm simplesmente um problema de “raça”, argumenta, mas também sofrem o efeito da feia questão das castas, um conjunto de práticas entranhadas que presumem que é natural —e correto— dividir os seres humanos em grupos diferentes e mantê-los presos a uma hierarquia.

E, até que esse segundo problema seja reconhecido, será impossível sanar as divisões expostas pelo movimento Black Lives Matter depois do assassinato do negro George Floyd por um policial branco.

“Um mundo sem castas libertaria a todos”, argumenta Wilkerson, apontando que o sistema de castas não só oprime as castas “inferiores” —e cria imenso desperdício de talento humano— como gera estresse psicológico para a casta “superior” (em geral branca).

“O uso de traços físicos herdados para diferenciar capacidades internas e valores de grupo pode ser a forma mais esperta que a cultura já desenvolveu para gerenciar e manter um sistema de castas”, escreve, argumentando, adiante, que não é possível compreender os tumultos atuais —ou outros pontos de inflexão na história dos EUA— sem levar em conta a casta.

Alguns americanos consideram estranho usar a palavra “casta” no país, já que ela costuma ser associada à religião hinduísta. Wilkerson admite o ponto: “Casta não é um termo que costume ser aplicado aos EUA. É considerada como parte da linguagem da Índia ou da Europa feudal”.

Mas, ao modo dos antropólogos, ela argumenta que a melhor maneira de compreender um fenômeno (o racismo nos EUA ou qualquer outra coisa) é encará-lo com uma lente comparativa mais ampla.

Assim, ela viaja à Índia e convive com grupos dalit, tradicionalmente considerados como “intocáveis”, e encontra neles fortes paralelos com a forma pela qual hierarquias incorporadas são legadas de geração a geração. Às vezes, essas hierarquias são sustentadas por meio de de coerção.

“A vasta maioria dos americanos de ascendência negra que viveram nesta terra nos primeiros 246 anos do que hoje são os EUA viveu sob o terror de pessoas que tinham poder absoluto sobre seus corpos e até sobre o ar que respiravam”, ela argumenta, apontando que “o ano de 2022 será o primeiro em que os EUA serão um país independente por tanto tempo quanto a escravidão durou em seu território”.

Mas a violência não era a única arma, ela enfatiza. No começo do século 20, nos EUA, “muita gente influente tinha aderido ao movimento pela eugenia... incluindo o investidor Alexander Graham Bell, o magnata automobilístico Henry Ford e Charles Eliot, reitor de Harvard”.

A cor da pele é um sinal hierárquico fácil de distinguir. Mas o racismo é consequência do sistema de castas —e não sua causa. Afinal, “raça” é uma construção artificial.

A palavra “caucasiano” foi inventada inteiramente ao acaso, e o conceito de ser “branco” flutuou ao longo do tempo, tanto incluindo quanto excluindo europeus meridionais, cubanos e japoneses.

Por isso a autora prefere se concentrar no “castismo”, e não no racismo, como “investimento na manutenção da hierarquia tal qual é, a fim de que uma pessoa possa manter sua posição e privilégio ou se elevar acima das demais, ou manter as demais por baixo”.

Essa distinção importa? Na era de um slogan como Black Lives Matter, aparentemente não. Mas Wilkerson insiste em que, a menos que deixemos de nos concentrar na pigmentação da pele, jamais levaremos as “castas superiores” a lidar com seus preconceitos —ou permitiremos que as “castas inferiores” se libertem de seus grilhões mentais.

“Castas são insidiosas e, portanto, poderosas, porque não envolvem ódio, não são necessariamente pessoais”, diz. “Elas são os sulcos desgastados de rotinas reconfortantes e expectativas irrefletidas, padrões de uma ordem social que está em vigor há tanto tempo que começa a parecer a ordem natural das coisas.”

E é aí que jaz o desafio, para todos nós. Um problema é a falta de conscientização. “Muita gente —e isso inclui pessoas que talvez consideremos boas e amáveis— pode ser ‘castista’, ou seja, ter um investimento em manter a hierarquia em sua forma atual, ou não estar interessada em mudá-la, ainda que essas pessoas não sejam racistas no sentido clássico”.

Outro é que sempre que as “castas inferiores” conquistaram mais liberdade, no passado, invariavelmente surgiu uma reação antagônica cruel; isso explica a explosão de racismo e preconceito sob o governo Donald Trump, depois da Presidência de Barack Obama. E, no plano pessoal, as pessoas não brancas —como a autora— que desafiam a hierarquia muitas vezes sofrem um pesado desgaste psicológico.

Mas Wilkerson oferece uma vaga nota de esperança: os sistemas de castas podem desabar, às vezes. “Para imaginar o fim das castas nos EUA, basta olhar para a história da Alemanha. O país é prova viva de que, se um sistema de castas —o reinado nazista de 12 anos— pode ser criado, ele também pode ser desmantelado.”

É claro que essa é uma analogia extrema e que esse “desmantelamento” só ocorreu porque surgiu um completo repúdio ao passado, em meio ao choque brutal da guerra. Mas, se repudiar as suposições do passado é o primeiro passo rumo à cura, o livro de Wilkerson oferece uma poderosa estrutura para isso.

“Caste” é leitura obrigatória para quem quer que se sinta raivoso, culpado ou ameaçado diante da questão da raça, nos Estados Unidos modernos.

Tradução de Paulo Migliacci​

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