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O BID para os americanos?

América Latina volta a exibir um nível preocupante de desunião

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Manuel Alcántara
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Os tempos da pandemia não impedem que certas partes da mecânica da vida institucional continuem a fluir. Processos que supõem tomadas de decisão colegiadas podem ser canalizados por meio de conexões virtuais. Se, além disso, o número de integrantes do grupo não chega à meia centena, as coisas ficam mais fáceis.

Dentro das diferentes agendas dos organismos internacionais, a renovação de seus quadros diretivos é um assunto frequente, que os tempos da Covid-19 não dificultaram. Na União Europeia, apenas algumas semanas atrás a eleição para a presidência do Eurogrupo foi realizada sem qualquer problema.

Em 12 e 13 de setembro, será a vez do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). As eleições para o comando da entidade financeira foram convocadas regularmente em 27 de julho, e o presidente atual, o colombiano Luis Alberto Moreno, confirmou há tempos sua decisão de não disputar uma nova reeleição para o posto que ocupa desde 2005.

Os bancos de desenvolvimento são peças interessantes no mecanismo internacional criado na década de 1950, quando a agenda estava repleta de boas intenções desenvolvimentistas. O BID, sob essa lógica, foi formado por 26 países da região, aos quais se somam os Estados Unidos, Canadá, três países asiáticos (China, Coreia do Sul e Japão) e 17 países europeus. Cuba assinou o termo de constituição do banco mas não o ratificou, e assim não é integrante. Formado em 1959 com sede em Washington, o BID hoje é o mais importante do mundo entre os bancos dessa natureza.

Como muitas organizações financeiras similares, as decisões do banco são tomadas em proporção à cota de capital desembolsado. Assim, os países signatários da América Latina e do Caribe contam com 50,015% dos votos.

Dentro dessa porcentagem, Brasil e Argentina têm cada qual 10,75%, seguidos pelo México (6,9%), Venezuela (5,76%), Chile e Colômbia (2,95% cada), Peru (1,44%) e Uruguai (1,15%). Os Estados Unidos detêm 30% dos votos, e o Canadá, 4%. Dos países de fora da América, o Japão detém 5% e Alemanha, Espanha, França e Itália têm, cada qual, 1,9%.

O BID segue uma regra não escrita que confere a presidência do banco a um cidadão de um país latino-americano e o segundo posto executivo a alguém dos Estados Unidos. A renovação da direção do BID tem três candidaturas: a de Laura Chinchilla, ex-presidente da Costa Rica; a do argentino Gustavo Véliz; e a do americano Mauricio Claver Carone, alto funcionário do atual governo americano e antes dirigente do FMI.

A situação gera uma tensão de natureza tripla que pode derrubar o banco depois de décadas de desempenho razoável, e além disso fazer com que o BID se torne parte de um jogo do qual a instituição até o momento se manteve alheia.

Em primeiro lugar, é um rompimento do acordo tácito sobre a nacionalidade do presidente. Em segundo, o candidato americano é uma pessoa estreitamente ligada ao governo Trump, que está disputando sua reeleição em três meses e que, por conseguinte, deveria esperar pelo resultado das urnas antes de fazer essa indicação. Por fim, Claver Carone tem um perfil questionável por se tratar de um ativista anticubano notável.

Por trás da posição dos Estados Unidos, a motivação oculta é a invasão silenciosa da economia latino-americana pela China, que cresceu notavelmente na última década. Washington estima que a margem de atuação do BID na região é muito relevante e que, graças ao seu comando, seria possível recuperar parte do terreno perdido.

Por outro lado, o governo republicano deseja que o BID tenha uma postura menos assistencialista e mais investidora. Os ex-presidentes Ricardo Lagos, Fernando Henrique Cardoso, Julio María Sanguinetti, Juan Manuel Santos e Ernesto Zedillo expressaram sua oposição pública desde o início à candidatura de Claver Carone.

Por enquanto, os governos da Colômbia, Equador, Uruguai, Paraguai, Honduras e Haiti aderiram explicitamente à proposta avalizada pelo presidente Trump, que, paradoxalmente, não manteve em dia os aportes americanos ao BID, desde sua chegada à Casa Branca. É muito possível que o governo brasileiro também apoie essa candidatura, e o México, depois da recente visita de seu presidente a Washington, manteve sua decisão em suspenso.

Os estatutos do BID preveem a possibilidade de convocar eleições sempre que países que respondam por 25% dos votos assim solicitarem. Ao voto da Argentina e dos países europeus devem se somar outros.

O alto representante europeu para assuntos de política externa e segurança, Josep Borrell, escreveu uma carta aos países membros solicitando o adiamento da eleição, e apontando que a pandemia não permite dedicar “a atenção necessária” à importante instituição, sobretudo “se considerarmos a apresentação, sem precedentes, de uma candidatura para presidir o banco pelo governo dos Estados Unidos”. Essa é uma solução paliativa cuja adoção salvaria momentaneamente as aparências, para diversos dos envolvidos.

Aconteça o que acontecer nas próximas semanas, a lição é clara: a América Latina volta a exibir um nível preocupante de desunião, que pode ser utilizado, em meio ao naufrágio atual, para que os Estados Unidos assumam diretamente o controle de mais uma peça na arquitetura institucional (e financeira) da região.

Manuel Alcántara é professor de ciência política na Universidade de Salamanca e na Universidade Pontifícia Bolivariana de Medellín. Especializado em problemas de representação política. Última publicação: “El oficio de político” (segunda edição), Tecnos (Madri).

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

Tradução de Paulo Migliacci​

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