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Proporcionalidade do 'imposto digital' não garante justiça social

Tributo sobre transações financeiras poderá agravar o peso da crise sobre os mais pobres

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Tathiane Piscitelli

Professora da FGV Direito SP

Nos debates da reforma tributária, voltou à pauta a tributação das transações financeiras. Para se afastar da malsinada CPMF, o Ministério da Economia conferiu nova roupagem ao tributo: seria um “imposto digital”, incidente, de forma majoritária, sobre o comércio eletrônico. A alíquota ainda não está definida, mas fala-se em 0,2% a 0,4% sobre o valor da transação. Segundo Paulo Guedes, o imposto seria justo porque recairia mais sobre os ricos: “O rico, que é quem faz mais transação, vai pagar mais”.

Guedes confunde proporcionalidade com justiça tributária. Em primeiro lugar, deve-se ter claro que a criação de um tributo sobre transações financeiras oneraria o consumo, já pesadamente tributado no Brasil. Segundo dados da Receita Federal do Brasil, em 2018, a tributação de bens e serviços foi responsável por 44,74% da arrecadação e 14,88% do PIB. Já a tributação da renda respondeu por 21,62% da arrecadação e 7,19% do PIB. É claro o desequilíbrio entre as bases.

A consequência dessa escolha política é um sistema tributário altamente regressivo, e, assim, injusto: a despeito de a tributação do consumo ser nominalmente proporcional, ela onera de modo mais gravoso os mais pobres. O valor pago pelo cidadão de baixa renda causa-lhe ônus financeiro maior, pois a maior parte de seus ganhos é gasto com bens e serviços, restando-lhe pouco (ou nada) para poupar. A criação de mais um tributo sobre o consumo agravará essa regressividade.

Esse argumento poderia ser combatido pelo fato de que a proposta é de um tributo “digital”, restrito ao comércio eletrônico, pouco acessado pela população de baixa renda. Há duas falácias potenciais nessa objeção.

A primeira: os contornos até agora apresentados desse novo imposto vão além dessas transações. Segundo o Ministério da Economia, o tributo não incidirá apenas sobre as operações em ambiente virtual, como compras de bens e serviços digitais e comércio eletrônico tradicional. Parece abarcar, também, os pagamentos ocorridos via sistema eletrônico bancário. Isso pode incluir, por exemplo, contas de consumo pagas pelo internet banking. Incluirá também pagamentos em dinheiro nas lotéricas, ligadas ao mesmo sistema “digital”? Não é impossível cogitar que sim.

A segunda falácia está em assumir que comércio eletrônico é estranho aos mais pobres. Pesquisa do Instituto Locomotiva revelou o crescimento de compras via internet durante o isolamento social e aumento da presença dos consumidores das classes C, D e E em tais operações. O dado infirma a premissa de que apenas os mais ricos consomem via comércio eletrônico. Além disso, no contexto da pandemia, muitos pequenos negócios migraram para esse ambiente em busca de fôlego econômico. O novo tributo impactará no preço dos bens e serviços, com possível retração da demanda.

O tributo sobre transações financeiras, portanto, poderá agravar o peso da crise sobre os mais pobres. Proporcionalidade, definitivamente, não é garantia de tributação justa.

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