Governo propõe usar recursos de precatórios e Fundeb para bancar novo programa social

Especialistas consideram desvio dos recursos uma manobra contábil que beira o calote e fere o teto de gastos

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Brasília

Após negociação com líderes partidários, o governo anunciou uma proposta para o novo programa social que substituirá o Bolsa Família, batizado de Renda Cidadã. Para bancar a assistência ampliada, o projeto prevê que serão usados recursos de precatórios e do Fundeb (fundo para a educação).

Precatórios são dívidas do governo cobradas após decisão judicial. Grande parte delas é de beneficiários do INSS que conseguiram por via judicial a concessão ou revisão de benefícios como aposentadoria e pensões.

No Congresso, a ideia de usar precatórios e o Fundeb é atribuída à equipe econômica. No pronunciamento em que estiveram presentes o ministro Paulo Guedes (Economia), líderes partidários e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não foi informado, porém, de quem partiu a proposta.

Segundo assessores de Guedes, o benefício médio no novo programa deve ser de R$ 300, uma meta dada por Bolsonaro. No entanto, no Congresso, não há uma previsão do valor nas simulações feitas até agora.

Hoje, R$ 300 é o valor do auxílio emergencial, que será pago até dezembro. Antes o benefício era de R$ 600.

Jair Bolsonaro durante a reunião ministerial - Alan Santos/Presidência da República

A solução para bancar o programa foi encontrada após Bolsonaro vetar a extinção de outros programas existentes hoje para custear o benefício. A proposta anunciada nesta segunda-feira (28), no entanto, é alvo de críticas de especialistas, parlamentares e do TCU (Tribunal de Contas da União).

A informação foi apresentada após reunião no Palácio da Alvorada com Bolsonaro ministros, deputados e senadores.

De acordo com o relator do Orçamento de 2021, senador Márcio Bittar (MDB-AC), além do atual orçamento do Bolsa Família, o governo prevê duas outras fontes de recursos para o programa.

A primeira é a limitação dos gastos com precatórios a 2% da receita corrente líquida —o que em 2021 equivalerá a aproximadamente R$ 16 bilhões, segundo técnicos do Congresso.

No ano que vem, o Orçamento prevê cerca de R$ 55 bilhões para pagar precatórios. Essa diferença, de R$ 39 bilhões, que sobraria com a nova regra, seria destinada ao novo programa social.

O orçamento do novo programa não foi anunciado. Em 2020, o Bolsa Família vai custar R$ 32,5 bilhões e, para 2021, foi estimado um orçamento de R$ 34,8 bilhões. A ideia é juntar os recursos.

Fundeb

Em outra frente, o plano propõe que parte da ampliação de verba do Fundeb seja deslocada para que beneficiários do programa mantenham seus filhos na escola.

Esse ponto não foi detalhado, mas a equipe econômica já havia defendido o uso de verba do Fundeb para bancar vouchers de educação no programa.

Especialistas em contas públicas questionam a legalidade dessas fontes.

"O uso de precatórios para financiar o Renda Brasil, na minha opinião, se trata de contabilidade criativa. Despesa com sentenças judiciais e precatórios é despesa obrigatória", disse Marcos Mendes, especialista em contas públicas e colunista da Folha, que participou da elaboração da regra do teto, que limita o aumento das despesas à inflação do ano anterior.

"A União já foi condenada a fazer o pagamento. Postergar esse pagamento para usar o dinheiro para pagar outra despesa é como tomar emprestado dos credores do erário para aumentar gasto", afirmou.

O diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), orgão ligado ao Senado, Felipe Salto, criticou as duas ideias apresentadas —o uso do Fundeb e dos precatórios.

"Limitar pagamento de precatórios é eufemismo para dizer que se empurrará com a barriga um pedaço relevante dessas despesas [obrigatórias]. Não se cancelou um centavo de gasto. Quanto a usar 5% do Fundeb, é preocupante, pois pode representar bypass no teto de gastos", disse.

Congresso

Menos de uma hora depois de anunciada, a proposta também já era alvo de críticas até na cúpula do Congresso.

Auxiliares do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), consideram que financiar o Renda Cidadã com recursos destinados ao pagamento de precatórios é inadmissível e classificaram a medida como calote.

Além disso, disseram considerar que o uso de recursos do Fundeb para abastecer o programa desrespeita o teto de gastos.

Após a reunião desta segunda, Bolsonaro disse que o governo trabalha com zelo fiscal e tem compromisso com o teto de gastos.

"O Brasil, segundo a orientação do Paulo Guedes, tem que voltar à normalidade o mais rapidamente possível. Estamos buscando recursos com responsabilidade fiscal e respeitando a lei do teto. Queremos demonstrar à sociedade e ao investidor que o Brasil é um país confiável", disse o presidente, rodeado por líderes de partidos do centrão, grupo que passou a integrar a base de sustentação do governo desde que cargos de segundo e terceiro escalão começaram a ser liberados.​

O senador Márcio Bittar disse que o novo programa será incorporado à PEC (Proposta de Emenda à Constituição) Emergencial, que traz medidas do pacto federativo e de ajuste fiscal. Ele também é o relator desse texto.

A decisão de anunciar o Renda Cidadã vem pouco tempo após o presidente ter afirmado que vetou qualquer discussão sobre o novo programa social e que o governo seguiria com o Bolsa Família até 2022.

Primeiro, em agosto, ele barrou que o benefício fosse custeado pela extinção de outros programas sociais, como o abono salarial. Segundo ele, o governo não pode "tirar de pobres para dar a paupérrimos".
Depois, há duas semanas, Bolsonaro se irritou com uma proposta da equipe econômica que previa o congelamento de aposentadorias para bancar o novo programa social, que seria batizado de Renda Brasil. Ele chegou a proibir a continuidade dos debates sobre o programa.

“Até 2022, no meu governo, está proibido falar a palavra Renda Brasil. Vamos continuar com o Bolsa Família. E ponto final”, afirmou na ocasião.

No dia seguinte, porém, o relator do Orçamento de 2021, senador Márcio Bittar, disse que foi autorizado pelo presidente a criar um novo programa em substituição ao Renda Brasil.

Reforma tributária

Também esperado para esta segunda-feira (28), o anúncio da proposta de reforma tributária, com novo tributo sobre transações financeiras e corte de encargos trabalhistas, acabou não sendo feito. Não houve acordo entre o governo e parlamentares em diversos pontos, principalmente em relação à nova CPMF.

A proposta de Guedes de criar um imposto sobre transações financeiras também já foi alvo de crítica de Bolsonaro.

Em setembro do ano passado, o então secretário da Receita Marcos Cintra acabou demitido após defender o imposto. Depois, o presidente chegou a dizer que a discussão sobre o tributo poderia ser retomada, mas ponderou que a CPMF está demonizada.

Defensor da proposta, Guedes insistiu na criação do novo tributo e convenceu Bolsonaro de testar a receptividade da medida entre parlamentares.

Participantes da reunião desta segunda-feira afirmaram que ainda há divergências em relação à proposta. Segundo relatos, Guedes não insistiu na defesa do tributo aos moldes da extinta CPMF.

No encontro, ficou definido que o Congresso seguirá com a tramitação da reforma tributária enquanto o governo discute internamente possíveis soluções para essa fatia da proposta.

“O Brasil precisa criar empregos em massa, porque tem um problema de desemprego em massa. Do ponto de vista político, continuamos estudando esse capítulo, particularmente, na reforma tributária”, afirmou Guedes.

O governo quer tentar chegar a uma nova proposta internamente para apresentá-la a Bolsonaro o quanto antes. Com o aval do presidente, o texto será apresentado aos líderes, que dirão se é viável ou não.

O presidente afirmou que sua intenção é ter as medidas aprovadas ainda antes das disputas municipais de novembro.

“Concluímos aqui o que devemos fazer nos próximos dias aproveitando, obviamente, este período antes das eleições que se aproximam para buscar alternativas, de modo que possamos, o mais rápido possível, colocar o Brasil na normalidade".​


Fontes de recurso para o Renda Cidadã

Governo quer usar Orçamento do Bolsa Família, verbas de precatórios (dívidas do governo cobradas após decisão judicial) e parte do Fundeb (fundo para a educação)

Bolsa Família
O Orçamento do governo para 2021 já reservou R$ 34,8 bilhões para o programa. O valor é maior do que o deste ano, de R$ 32,5 bilhões

Precatórios
O pagamento de precatórios pelo governo seria de, no máximo, 2% da receita corrente líquida --o que em 2021 deve ficar perto de R$ 16 bilhões. Como a previsão atual do Orçamento para essa conta está em R$ 55 bilhões, haveria uma sobra de até R$ 39 bilhões a ser direcionada ao programa social

Fundeb
Recursos provenientes da ampliação de verbas do fundo poderiam ser deslocados para o Renda Cidadã. Neste ano, a equipe econômica já defendeu que parte da verba do Fundeb, que não contabiliza no teto de gastos, seja usada para o pagamento de vouchers de educação.

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