Meme é arma de Taiwan contra desinformação sobre coronavírus, diz ministra

Audrey Tang, ministra digital taiwanesa, colocou ilha na vanguarda de transparência governamental com uso de tecnologia

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São Paulo

Audrey Tang, 39, ministra digital de Taiwan, é hacker cívica, anarquista conservadora e transgênero.

Desde que assumiu o cargo, em 2016, ajuda a coordenar a implementação de medidas para um governo aberto —movimento que se pauta na transparência de informações do setor público.

O país figura entre os líderes desse tipo de administração no mundo.

Uma de suas práticas, dentro desse espírito, é gravar todas as conversas e divulgá-las —inclusive esta entrevista concedida à Folha.

Tang se define como hacker cívica e anarquista conservadora; ela participou do movimento estudantil que ocupou o parlamento taiwanês em 2014
Audrey Tang, 39, ministra Digital de Taiwan, começou a programar com oito anos; autodidata, largou o colégio e criou a primeira empresa aos 16; trabalhou com tecnologia no Vale do Silício, na Califórnia, antes de ingressar no setor público - Divulgação

“Avisamos que vamos fazer um vídeo ou uma transcrição, que fica disponível online no sistema público. Então, eles podem ‘fazer lobby’ para o interesse público, não para o interesse privado, porque isso não ficaria muito bem em uma apresentação ao público”, diz.

Programadora desde criança e ex-empresária do Vale do Silício, Tang defende que o governo siga os princípios de transparência do código aberto, cultura que prevê o desenvolvimento colaborativo e gratuito de produtos de informática, livres de licenças empresariais.

Em 2014, Tang participou do Movimento dos Girassóis, quando centenas de manifestantes ocuparam o Parlamento taiwanês contra um convênio comercial com Pequim.

O protesto resultou numa lei que determinou transparência sobre o acordo.

“Votar no presidente é como enviar dois bits de informação a cada quatro anos. É muito ineficiente, não eficaz para comunicar prioridades da população. Com o advento das mídias sociais, as pessoas se sentem muito próximas da hashtag certa”, diz.

Na pandemia, Taiwan comandou estratégia considerada bem-sucedida de combate ao vírus. O país vive o pós-pandemia desde o fim de abril.

Mapas colaborativos na internet para a distribuição de máscaras, campanha federal de combate à desinformação via memes e monitoramento por celular de pacientes em quarentena estão entre as iniciativas do gabinete digital.

*

Vocês gravam em vídeo todas as entrevistas?
Não necessariamente. Se você publica como vídeo, também publico como vídeo, nesse caso não tem transcrição. Mas, se a entrevista for apenas em texto, a maioria dos jornalistas prefere que façamos uma transcrição e publiquemos dessa forma. Você escolhe.

Isso é política de governo aberto?
Sim. Temos um protocolo de visitantes. Explica quando, onde, por que e como fazemos essas apresentações.

Pode citar outras medidas de transparência?
Estou no Laboratório de Inovação Social, que é um parque. Derrubamos os muros, o que tornou o lugar muito acessível. Toda quarta, das 10h até a noite, qualquer pessoa pode entrar, bater na minha porta e ter de 10 a 40 minutos do meu tempo.

Como a sra. se descreve politicamente?
Sou uma ministra com letras minúsculas.

Como assim?
Não uso maiúscula, mas um pequeno “m”. Como ministra digital, em letras minúsculas, comunico, advogo, faço pregações e escrevo poemas. Você pode pensar em mim não como uma ministra de cima para baixo, mas como alguém que serve como um canal entre as várias posições diferentes, com o intuito de encontrar valores comuns. Seria mais como uma moderadora de sala de bate-papo do que qualquer outra coisa.

O que a sra. destacaria de tecnologia em Taiwan para o combate ao vírus?
Estamos no pós-pandemia, basicamente, desde o fim de abril. A tecnologia mais importante para lutar contra o coronavírus é a química. Chama sabão. Você precisa lavar as mãos adequadamente. Isso é muito importante.

Spray para mãos, álcool e temperatura. Essas são as tecnologias mais importantes.

Os hotéis de quarentena, é claro, também ajudaram muito para acolher todos que retornavam a Taiwan. Se tivessem um grande espaço em casa, com próprio banheiro e não morassem com pessoas muito vulneráveis ao coronavírus, também podiam escolher pessoas em quarentena doméstica.

Usamos também o rastreamento. Nesse caso, uma casa de quarentena, por exemplo, é colocada na cerca digital, e as torres de celular triangulam as posições dos telefones.

O país adotou também o sistema de mapa para distribuição de máscaras. Como isso funciona?
A cada 30 segundos, atualizamos o nível de disponibilidade de máscaras para crianças e adultos de todas as farmácias de Taiwan em um mapa online, para que as pessoas possam buscá-las facilmente.

Elas podem consultar o sistema por assistente de voz ou por chatbot para saber o nível de estoque restante das farmácias mais próximas e ir até lá e passar o cartão nacional de saúde.

Se for adulto, pode coletar nove máscaras médicas por um preço muito baixo, e, se for para uma criança, estão disponíveis dez máscaras médicas a cada duas semanas.

Estamos usando a mesma tecnologia para exibir a disponibilidade dos vouchers de estímulo econômico. Reaproveitamos essa tecnologia do setor cívico para a distribuição de máscaras nas farmácias. Não é uma ideia do governo.

Isso poderia ser adaptado para o Brasil?
Muito facilmente. Na Coreia do Sul, usaram esse mapa para convencer o próprio governo quando estão racionando a máscara médica.

Vocês também têm uma estratégia contra a desinformação sobre o vírus. Sim, chama “humor sobre rumor”. Usamos sempre que as pessoas compartilham uma desinformação, um boato com mais duas ou três pessoas.

Taiwan é uma democracia liberal, não podemos fazer uma remoção administrativa. Em vez disso, desmerecemos os mitos, os boatos como fazem os “Mythbusters” [Caçadores de Mitos, programa de TV que desmistifica crenças e lendas urbanas]. Para isso, usamos memes e fotos engraçadas algumas horas depois de cada boato popular se espalhar.

Por ser engraçado, talvez tenha um valor de cinco: cada pessoa compartilhará com outras cinco. Assim, rapidamente, as pessoas serão vacinadas contra o vírus infodêmico da mente [segundo da Organização Mundial da Saúde, excesso de informação sobre a pandemia dificulta identificar o que é correto ou falso].

Se você sente alegria, humor sobre alguma coisa, literalmente, não pode sentir indignação sobre a mesma coisa.

Como definem o que é verdade e o que não é verdade? A sra. não vê risco de censura?
Não há censura. Quanto aos fatos científicos, acho que não há espaço para opiniões. Para nós, estamos apenas compartilhando nossa peça do quebra-cabeça —ou seja, a ciência—, mas não a compartilhamos de cima para baixo. Em vez disso, compartilhamos de uma maneira engraçada.

Não fazemos censura, ponto. No entanto, tornamos a verdade —nesse caso a ciência— divertida e acessível. É uma rede de mais de cem pessoas trabalhando juntas para desmascarar isso de maneira rápida.

Não são só pessoas ligadas ao governo? 
Fornecemos o pacote memético. Obviamente, jornalistas profissionais podem checar muitos outros pontos. Taiwan tem duas organizações, o Taiwan Fact-Check Center e o MyGoPen, que são parte da Rede Internacional de Verificação de Fatos. Nosso trabalho é transmitir a mensagem aos verificadores de fatos o mais rápido possível.

O Brasil está discutindo um projeto de lei para combater notícias falsas. Taiwan tem regulamentação para isso?
Não usamos esse termo “notícias falsas” porque, no mandarim, notícias e jornalismo são a mesma palavra. Jornalismo é literalmente um trabalho de notícias em Taiwan.

Não há como dizer “notícias falsas” sem ofender os jornalistas. Em vez disso, usamos a palavra desinformação. Na definição legal, trata-se de mensagem falsa que foi espalhada intencionalmente para causar danos ao público.

Se não for intencional, não é desinformação. Se não está causando dano público, mas apenas prejudicando a imagem de um ministro, isso é apenas bom jornalismo [risos]. Se não está fazendo uma afirmação falsa, se é científica, factualmente verdadeira, então, é claro, pode ser apenas uma verdade inconveniente.

O que estou afirmando é que, se for uma mensagem prejudicial ao público, falsa, não faremos remoção administrativa. Em vez disso, fazemos um aviso público dizendo que conteúdo é intencionalmente disseminado.

Qual o conceito de governo aberto hoje e qual sua relação com a democracia?
Democracia, para mim, é apenas uma das tecnologias sociais. A primeira vez que votei para para presidente foi em 1996, na nossa primeira eleição. Eu já tinha 15 anos e já era bastante versada na World Wide Web. Para nós, internet e democracia aconteceram juntas.

Votar no presidente é como enviar dois bits de informação a cada quatro anos. É muito ineficiente, não muito eficaz para comunicar prioridades da população.

Com o advento das mídias sociais, as pessoas se sentem próximas da hashtag certa. Em vez de esperar por um representante, as pessoas juntaram uma hashtag —MeeToo, ClimateStrike, TaiwanCanHelp.

Essas são as novas formas de organização.

Qualquer pessoa pode ligar para um número do governo e perguntar qualquer coisa relacionada à pandemia. Todas as perguntas recebem uma resposta. Em abril, havia um garoto que não queria ir para a escola porque, quando você raciona máscaras, não é possível escolher a cor. Só tinha rosa para esse distrito. Ele não queria usar máscara rosa porque disse que seus colegas ririam dele. Isso é um problema.

No dia seguinte, todos os oficiais médicos, incluindo o ministro, usavam uma máscara médica rosa para apoiar o menino e compartilhar ideias de integração de gênero. Isso é responsabilidade.

Acha que o fato de ser uma mulher trans no cargo de ministra traz impacto político e representação às minorias?
Não acho que as pessoas se importem. É claro que Taiwan tem sido muito liberal para as comunidades LGBTQIA+. Tsai Ing-wen [presidente de Taiwan] também é um exemplo muito bom, pois é a única mulher líder na Ásia que é presidente por mérito, em vez de representar uma família política.

A presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, fala durante festa anual no país - Sam Yeh - 7.set.2010/AFP

Em Taiwan, acreditamos na ideia de que a biologia não deve controlar o destino de ninguém e, portanto, não há discriminação. No Parlamento, mais de 40% são mulheres.

Não acho que ser transexual represente um desafio para mim como ministra. Pessoalmente, me oferece mais trânsito social, e posso simpatizar com várias pessoas diferentes.

Não tenho essa dualidade binária em minha mente. Não diria que metade da população é diferente de mim, então, é mais fácil eu assumir todos os lados.

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