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Militarização de agência de dados abre caminho para vigilância em vez de proteção

Bolsonaro tem 5 razões para nomear integrantes da caserna, mas nenhuma atende à defesa da privacidade

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Brasília

Um dia depois de anunciar um general da reserva como vice, Jair Bolsonaro avisou que não pretendia parar por ali. "Vai ter um montão de ministro militar", disse o então candidato, em agosto de 2018. Homens de farda no primeiro escalão do governo eram, portanto, favas contadas. Mas a história completa dessa ocupação mostra um avanço maior sobre áreas estratégicas da máquina federal.

O espaço se ampliou na última quinta-feira (15), quando o presidente nomeou três militares entre os cinco novos diretores da ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados). O órgão não tem relação direta com as carreiras das Forças Armadas, mas já se sabe que esse não é um critério adotado pelo Palácio do Planalto.

No papel, a agência é uma instituição independente, com a função de implementar e fiscalizar o cumprimento da lei criada para preservar os dados dos cidadãos. Mesmo antes do anúncio da escalação da diretoria, especialistas e consultores advertiam que a militarização do órgão poderia transformá-lo numa ferramenta de vigilância, e não de proteção.

A surpresa foi grande porque os alertas se deram a partir de boatos de que haveria um único integrante da caserna entre os cinco diretores. Bolsonaro triplicou o receio ao mandar "um montão de militares" para o comando da agência.

Pertencer aos quadros das Forças Armadas não torna ninguém um proscrito em outras áreas serviço público, mas algumas características levantam o temor de um aparelhamento do órgão de proteção de dados. Entre elas, está uma possível confusão entre as atividades de vigilância e de segurança nacional típicas dos militares, de um lado, e a missão da agência de defender a privacidade dos cidadãos, de outro.

Há conselheiros fardados nos órgãos responsáveis pela proteção de dados na Rússia e na China, onde as ferramentas de espionagem são tradicionalmente militarizadas. Segundo um levantamento da organização Data Privacy Brasil, noticiado pela Folha, esses são alguns dos poucos países desenvolvidos com essa característica.

A nomeação de militares era uma promessa de campanha de Bolsonaro, mas o alargamento de sua influência se deu ao longo dos 22 meses de mandato. Em alguns casos, as escolhas levantaram questionamentos sobre a compatibilidade dos ocupantes com seus cargos.

Na campanha, o então candidato dizia que levaria em conta a competência e a habilidade dos homens e mulheres de farda para cada área do governo. "Tem ministério que não cabe militar, porque não temos vivência nisso", afirmou, ainda em 2018. Essa linha de corte ficou pelo caminho.

Bolsonaro chegou a nomear um integrante das Forças Armadas para cuidar da reforma agrária e viu a chegada de outros ao Ibama. Pouco depois de mandar o general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde, declarou: "Vai botar mais militares, sim. Com civis não deu certo. E ponto final".

O presidente tem até cinco razões diferentes para nomear militares para postos estratégicos –e nenhuma delas combina com uma autoridade estatal de proteção de dados.

A primeira vantagem que Bolsonaro extrai dessa ocupação é a relação de hierarquia. Ao escolher um general da ativa para o Ministério da Saúde, ele conseguiu determinar a recomendação da hidroxicloroquina como política de governo, contornando a resistência dos antigos titulares civis da pasta.

O governo também usa a categoria para dar peso a suas ações de monitoramento, o que ficou explícito com o aumento da presença de militares na Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Além disso, aproveita a trajetória de alguns personagens para dar um verniz técnico a setores como o Ministério da Ciência e Tecnologia, comandado pelo astronauta Marcos Pontes, tenente-coronel da Força Aérea.

A quarta razão atende diretamente a Bolsonaro. Ele escolheu para sua administração nomes com os quais tem uma relação pessoal, construída em seu passado no Exército, como o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Por fim, a escalação de servidores que seguem a doutrina da caserna também facilita o alinhamento com muitas das posições ideológicas do presidente.

Essas motivações podem servir politicamente ao presidente e até produzir benefícios colaterais em áreas ligadas à engenharia e à logística, por exemplo. No caso de áreas técnicas e independentes, é mais difícil enxergar o interesse público nas nomeações.

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