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Michael França

Ascensão negra: sinfonia na cacofonia

Será cada vez mais difícil ignorar a desigualdade na sociedade brasileira

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Michael França

Doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo; foi visiting scholar na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper

O Brasil está vivendo um novo cenário racial. Hoje, existe uma disposição significativa de negros não só de se autodeclarar, como também de valorizar a identidade negra. Líderes não brancos, com significativo poder de influência, estão surgindo com frequência no debate público.

Nos bancos das universidades e fora deles, jovens talentosos e ávidos por transformação social estão surgindo. Nas universidades, os negros já são a maioria dos matriculados.

Houve forte crescimento e estruturação do movimento negro. Isso faz com que exista na sociedade brasileira não só o expressivo desenvolvimento de um grupo de pressão mais coeso e organizado, mas também a consolidação de um movimento que tem significativo potencial de ditar rumos da agenda de política pública.

A pauta racial já vinha ganhando progressiva atenção. A sociedade passava por um processo de transformação lento e gradual pelo qual estava havendo crescente conscientização dos desafios raciais. Mas foi a partir da explosão da maior onda de protestos antirracistas da história, após o assassinato de George Floyd, que esse processo se acelerou.

Dados do Google Trends ajudam a ilustrar essa situação. Durante e depois dos protestos, a busca pela expressão “Racismo Estrutural” foi expressiva. Por sua vez, a ampliação na conscientização de que há um problema a ser resolvido é importante, visto que uma forma relevante de mudar a realidade é transformando o sistema de crenças.

Com isso, um país que diz se orgulhar da sua miscigenação, mas que sempre excluiu e violentou a população negra, será, gradativamente, forçado a mudar a sua trajetória. Escolhas como a inação e a negação ficarão cada vez mais inviáveis. As relações raciais, sempre tratadas de maneira implícita e velada, estão sendo explicitadas.

O processo não será fácil. Muitos usarão a suposta motivação pela causa para benefício próprio e para enriquecer. Oportunistas tentarão capitanear o discurso racial de maneira ideológica e falsos líderes e populistas poderão confundir a população. Muito ruído será gerado.

Adicionalmente, sabe-se que, apesar da pretensa cordialidade, tolerância não é a marca de muitos brasileiros. Com a progressiva e inevitável readequação das relações de poder, a hipótese de uma piora nas relações raciais e, até mesmo, de uma polarização racial, não deve ser descartada.

A sociedade desenvolveu mecanismos que têm induzido de forma acelerada à formação e à ampliação de grupos antagônicos. Porém, sabe-se que um dos problemas da polarização é fazer com que agendas importantes passem a ser percebidas como associadas a determinados grupos. Isso dificulta o debate saudável e o avanço até uma sociedade mais justa e próspera.

Este é o momento de aproveitar e fazer o melhor uso dos fatos e evidências para promover e conduzir um debate inclusivo e qualificado. Com os novos ventos da mudança, se tornará cada vez mais difícil ignorar a discriminação e a desigualdade enraizadas na sociedade. Resta saber se os rumos do debate serão ditados pela emoção ou por uma discussão construtiva.

O Brasil está falando deste grave problema há muito tempo ignorado pelas elites. Isso poderá ser a saída para enfrentar os desafios, ainda que não seja fácil. É imprescindível que cada cidadão assuma um papel ativo nesse complexo debate. Pode haver sinfonia nesta cacofonia.

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O título deste texto foi inspirado no belíssimo vídeo “Feel the sounds of Kenya de Cee-Roo”, disponível no YouTube.

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