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Brasileiro urbano redescobre fogão na pandemia e renova cozinha para novos tempos

Para deixar o almoço no meio do expediente mais prático, brasileiros compram novos eletrodomésticos e buscam receitas na internet

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Ana Carla Cecci, 51, publicitária, passou a cozinhar mais durante a pandemia e comprou novos eletrodomésticos Mathilde Missioneiro/Folhapress

São Paulo

Um dos muitos efeitos da quarentena foi o redescobrimento, nas grandes cidades, da cozinha, preterida pela comida a quilo durante o trabalho e pelo restaurante do final de semana.

Para deixar o almoço no meio do expediente mais prático durante a crise da Covid-19, brasileiros compram utensílios e eletrodomésticos novos, fazem a reforma da área e buscam receitas na internet.

Além da comida do dia a dia, com mais tempo em casa, muitos desenvolveram um hobby e passam a se aventurar em receitas mais elaboradas.

Carla Cecci, 51, almoçava fora todo dia e agora faz almoço e janta para o marido e a mãe. “Essa coisa de cozinhar todo dia não existia para mim. É necessário todo um planejamento, nunca tinha me dado conta de que demandava tanto.”

Para facilitar a dupla jornada, a profissional de marketing comprou R$ 600 em equipamentos. “Foi meu maior investimento dos últimos tempos. Comprei air fryer [fritadeira sem óleo], panela de arroz e batedeira, coisas que nunca pensei em comprar antes. Agora tem bolo toda semana em casa.”

Ana Carla Cecci comprou novos eletrodomésticos como air fryer e e liquidificador para cozinhar em casa - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Ela conta que cozinhar todos os dias despertou o interesse por culinária, algo que ela pretende seguir mesmo com o fim da quarentena.

“Não tenho mais vontade de ir a restaurantes com a frequência que ia. Aprendi a fazer marmitas tranquilamente. E, em casa, você acaba comendo muito melhor. A gente gasta mais com supermercado, mas menos em restaurante, vale a pena.”

Dados da Social Miner, empresa que monitora sites de comércio eletrônico, apontam que compras de supermercado e hortifrúti viraram o segundo item mais vendido no meio digital, atrás de farmácia, durante a pandemia. Eletrônicos, que ocupavam a primeira posição, caíram para a sétima.

“É um movimento que vem mesmo antes da pandemia. No ecommerce, compravam-se livros e eletrônicos, depois a moda avançou e, nos últimos anos, veio a alimentação. A venda de itens essenciais ainda não é tão representativa, mas foi a que mais cresceu na pandemia”, diz Ricardo Rodrigues, cofundador e
presidente da Social Miner.

Pesquisa da empresa com 2.000 pessoas aponta que 66% vão comprar itens de supermercado online em 2021. “No horário de almoço não vemos mais o tradicional pico nos sites de ecommerce. Fica eviden-
te que a rotina mudou, as pessoas estão cozinhando ou pedindo delivery”, diz Rodrigues.

Itens de cozinha seguem o movimento. Na Tramontina, as vendas de panelas cresceram 17,21% de janeiro a agosto em relação ao mesmo período de 2019.

Linha de montagem na fábrica da Tramontina
Linha de montagem de tampas de panelas de pressão na fábrica da Tramontina em Carlos Barbosa (RS) - Divulgação

Também aumentou a procura por clubes de assinaturas de alimentos. O faturamento da Betalabs, que oferece plataforma para ecommerce e clubes de assinatura, subiu 14% no faturamento com clubes de assinatura de alimentos no ano. Em outubro, seus mais de 100 clientes nesse segmento tiveram uma média diária de 200 novos assinantes. A maior demanda foi por alimentação saudável, seguida de congelados e doces.

O brasileiro também foi atrás de receitas. Em toda a série histórica do Google, que se inicia em 2004, nunca se buscou tanto “receita de pão” como em abril deste ano. O termo “receita” atingiu seu ponto mais alto das buscas em abril e maio de 2020, e “cozinha” teve seu pico em junho.

“Esse fenômeno do pão é incrível, chegou a faltar fermento biológico nos supermercados”, diz Betty Kövesi, dona da Escola Wilma Kövesi de Cozinha.

Ela conta que a procura por cursos por quem não sabe cozinhar aumentou. “São jovens na casa dos 30 anos que moram sozinhos ou com namorados e estão de home office.”

Buscas por mais básicos da escola, que ensinam a fazer arroz e feijão e fritar um bife, começaram antes da pandemia.

“Essa história de pedir delivery todo dia à noite já existia antes da pandemia. Recebia alunos que não se
alimentavam bem, e a recomendação de psicólogos era cozinhar como forma de terapia. Com certeza [a pandemia] foi uma mudança de paradigma, acelerou a procura por hábitos mais saudáveis.”

A relações-públicas Melina Buzzo, 22, comprou três panelas, facas profissionais e louças e conseguiu levar o hobby de cozinhar a sério. Aproveitou para treinar receitas, até que se matriculou em um curso de cozinha profissionalizante de dois anos.

“Cozinhava doces havia um tempo e sabia o básico, mas, com faculdade e trabalho, não tinha tempo. Com a pandemia, fui para a casa dos meus pais, e a cozinha foi uma válvula de escape”, afirma.

Fernanda Apolônio, 24, optou por cozinhar todas as refeições em casa por medo de contaminação com o delivery.

“Sempre gostei muito de cozinhar, mas na correria não dava e era mais prático comer em quilo, que não era tão caro perto da faculdade.” Com a economia de tempo do trajeto para o trabalho, passou a fazer três receitas por dia.

“Comprei várias formas, liquidificador, processador e panelas. Investi e me acostumei a não comer fora. Você fica com preguiça de cozinhar e só se acostuma. Agora é tranquilo cozinhar, é relaxante. Estava estressada e ficava cozinhando. É muito terapêutico.”

Ela conta que seus amigos também se aventuraram na cozinha durante a pandemia. Um que nunca tinha feito um bolo criou um Instagram de bolos, e outro começou a fazer pão de fermentação natural.

“Comer fora era uma socialização, mais para encontrar pessoas do que para comer na rua. Não tenho mais essa vontade. O próximo passo é fazer um superjantar com os amigos que aprenderam a cozinhar”, diz a recém-formada advogada.

Parq João Caetano, fundador da consultoria Mapfry, porém, a volta à cozinha não resiste no pós-pandemia.

“Acreditamos que o hábito de cozinhar mais não perdure tanto, sendo mais um reflexo da crise atual”, afirma.

Segundo ele, a presença das mulheres no mercado de trabalho e cada vez menos pessoas em papéis domésticos, bem como famílias pequenas, levam a uma redução no preparo doméstico de alimentos.

“As próprias cozinhas vêm sendo o espaço mais sacrificado nas casas modernas, e isso também não deve mudar. A demanda por espaços para home office e estudos fica na frente da expectativa
por uma cozinha ampla.”​

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