Caso Carrefour é teste para índice de sustentabilidade no Brasil

Grupo tem registros de violência desde 2009, mas é destaque em indicadores como ESG

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São Paulo

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, por dois seguranças da rede de supermercados Carrefour, na noite da quinta-feira (19), após fazer compras no estabelecimento em Porto Alegre, é um teste para a credibilidade de indicadores que são utilizados como atestado de boas práticas corporativas em questões sociais e ambientais. A agressão ocorreu na véspera do feriado de Consciência Negra no Brasil.

A rede tem destaque nesses indicadores, apesar de ter sido cenário de outros episódios de violência e discriminação nos últimos anos.

Grupo global com sede na França, o Carrefour atua em 30 países. O Brasil é o seu segundo mercado, atrás apenas do francês. No ano passado, faturou o equivalente a R$ 62 bilhões no Brasil.

O empresário brasileiro Abilio Diniz é acionista da rede desde 2014 e membro do conselho global do grupo. Procurado pela reportagem da Folha ao longo da sexta-feira (20), não se pronunciou. No final da noite de sexta, se manifestou pelo Twitter.

O caso brutal na unidade gaúcha é o ápice de uma sequência de relatos sobre discriminação, descaso e violência sob diferentes aspectos no Brasil, com alguns casos obtendo grande repercussão.

Em 2009, um vigia e técnico em eletrônica, também um cliente negro, foi agredido por seguranças de uma unidade em Osasco, São Paulo, acusado de tentar roubar o próprio carro no estacionamento da loja.

Em dezembro de 2018, também em Osasco, um cão foi envenenado e espancado por um segurança da rede, causando enorme comoção na comunidade.

No caso mais recente, um promotor de vendas terceirizado da rede morreu enquanto trabalhava em uma unidade do grupo, em Recife, em agosto deste ano. O corpo foi coberto com guarda-sóis e cercado por caixas enquanto a loja seguiu em funcionamento. O IML (Instituto Médico Legal) só fez a remoção após quatro horas.

Cartaz diz "Justiça, Beto vive" em frente ao Carrefour de Porto Alegre onde Beto Freitas foi assassinado
Cartaz diz "Justiça, Beto vive" em frente ao Carrefour de Porto Alegre (RS) onde Beto Freitas foi assassinado - Silvio Avila/AFP

Ainda assim, a rede segue como destaque em alguns indicadores que são utilizados como atestado de boas práticas corporativas em questões sociais e ambientais.

O Carrefour, por exemplo, é uma das empresas associadas ao Instituto Ethos, organização que atua na defesa de negócios socialmente responsáveis. A rede recebeu no ano passado o prêmio de melhor empresa do setor de varejo no Guia Exame de Diversidade, feito em parceria com o instituto.

Como tem capital aberto em Bolsa, também se submete a avalições dentro dos princípios do chamado ESG (sigla usada denominar melhores práticas ambientais, sociais e de governança). O índice virou uma febre entre as empresas e vem sendo considerado uma revolução na forma de avaliar a sustentabilidade dos negócios.

No Brasil, as ações do Carrefour estão listadas na B3, o pregão local, desde julho de 2017. Nesta sexta-feira, as ações da empresa tiveram alta durante boa parte do pregão, mesmo com a Bolsa brasileira operando em queda.

Os papeis do Carrefour Brasil fecharam em alta de 0,49%, a R$ 20,39, enquanto o Ibovespa, índice acionário de referência na Bolsa brasileira, caiu 0,58%, a 106.042 pontos. Não era algo que refletisse o desempenho global do grupo, por exemplo. Na França, o Carrefour caiu 2,2%, a 13,82 euros (R$ 88,34). A Bolsa de Paris subiu 0,4% no pregão.

“Levei dois socos na cara hoje, o primeiro pelo próprio fato de terem espancado um negro até a morte e o segundo pela falta de reação do mercado com relação ao fato”, diz Fabio Alperowitch, diretor da Fama Investimentos, especializada em gestão de fundos ESG, ao avaliar o caso do Carrefour. “Desse jeito, o ESG acabou por aqui antes mesmo de começar”.

O Carrefour França faz parte de oito índices ligados a ESG da Bolsa francesa, a Euronext Paris, tendo peso de 3,2% no índice de líderes ESG da França, que conta com 30 empresas e reflete o desempenho de suas ações.

Segundo Alperowitch, os investidores no Brasil ainda não se mostram maduros para tratar de questões relacionadas à diversidade e ao meio ambiente e entender que apenas o retorno financeiro de curto prazo não é suficiente para dar vida longa a uma empresa.

Alguns analistas concordam com essa percepção.

“No curto prazo, o mercado lamentavelmente não absorveu o que aconteceu. No Brasil, o investidor ainda não leva em conta o que não diz respeito diretamente ao impacto financeiro da empresa, o que é bizarro e vergonhoso”, diz Simone Pasianotto, economista-chefe da Reag Investimentos.

Segundo a economista, o maior volume de compra das ações da varejista foi de manhã antes dos protestos nas lojas, que se concentraram na parte da tarde.

Houve protesto na porta da loja de Porto Alegre. Uma outra unidade na região dos Jardins, bairro nobre da capital paulista, foi alvo de manifestantes ao final de um ato que que protestava contra a rede. “Provavelmente, as ações do Carrefour vão cair na semana que vem”, diz Pasianotto.

Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos, ainda entende que os fatos são pontuais. Diz que o Carrefour tenta aprimorar suas práticas desde a agressão ao cliente no estacionamento em Osasco em 2009.

“Esse caso de 2009 é um caso emblemático e a partir daí o Carrefour faz um turning point na empresa”, diz ele. “Aumentaram significativamente a participação de mulheres e pessoas negras em cargos de média gerência e gerência e desenvolveram de fato práticas e política em prol da diversidade.”

Na avaliação de Caio, o problema seria a terceirização dos seguranças, que traz economia de custo, mas faz com que a empresa perca o controle da gestão. “Isso custa mais, mas fazer economia numa questão central não faz sentido. É a garantia dos direitos dos consumidores.

A empresas responsável pela segurança da loja do Carrefour em Porto Alegre é o Grupo Vector, que tem em seu quadro societário dois policiais militares e um policial civil. A Vector atende outras grandes redes varejistas no Brasil, como Extra, Atacadão e BIG (Walmart).

O risco em relação à terceirização também é levantado por um especialista em diversidade, que presta consultoria para grandes empresas, mas preferiu que seu nome fosse mantido em sigilo.

Para ele, as empresas precisam incluir seus terceirizados em treinamentos de diversidades e exigir que as empresas prestadoras de serviço compartilhem das mesmas visões e dos mesmos valores.

Gesner Oliveira, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas), não quis opinar sobre o caso do Carrefour, mas afirmou que não se contratam terceirizados sem saber se estão alinhados com os valores das empresas.

“Na minha política de contratação eu tenho que ser rigoroso na escolha dos meus fornecedores. Uma primeira preocupação é com os controles, tanto do ponto de vista de compliance até dos direitos humanos”, diz Oliveira. “A segunda é ter mecanismos internos de rápida percepção e investigação.”

No meio da tarde, a viúva do cliente morto na loja em Porto Alegre, em entrevista à Globonews, declarou que o casal fez compras normalmente na noite desta quarta-feira (10) e ela não tinha entendido o que havia provocado a violência dos seguranças. Também contou que que até aquele momento não tinha sido procurada por nenhum representante do Carrefour.

A rede manteve a programação prevista para o dia e divulgou um manifesto sobre diversidade.

No início da noite desta sexta-feira, o presidente mundial do Grupo Carrefour, Alexandre Bompard, se manifestou em sua conta no Twitter sobre o assassinato. O francês pediu a revisão do treinamento de funcionários e de terceiros, “no que diz respeito à segurança, respeito à diversidade e dos valores de respeito e repúdio à intolerância”.

O Carrefour Brasil anunciou que romperá o contrato com a empresa responsável pelos seguranças, além de demitir o funcionário responsável pela loja na hora do ocorrido.

Bompard disse que essas medidas são insuficientes. “Meus valores e os valores do Carrefour não compactuam com racismo e violência”, tuitou. O executivo chamou as imagens do assassinato como “insuportáveis”. “Eu pedi à equipes do Grupo Carrefour Brasil total colaboração com a Justiça e autoridades para que esse os fatos deste ato horrível sejam trazidos à luz."

O presidente também afirmou que espera que o Carrefour Brasil se comprometa à revisão completa das ações de treinamento dos colaboradores e de terceiros, que terá um plano de ação definido com o suporte de empresas externas para garantir a independência desse trabalho.

Também pelo Twitter, o empresário brasileiro Abilio Diniz, que detém quase 10% do Carrefour Brasil por meio do fundo de investimento Península, escreveu: "O que aconteceu em Porto Alegre ontem foi terrível e me deixou profundamente triste e indignado. Minha solidariedade e orações à família de João Alberto Silveira Freitas. Sua morte é uma tragédia e uma enorme brutalidade."

O empresário também afirmou que "o racismo é execrável e inaceitável, e devemos combatê-lo sempre, com toda a força". Disse ainda que "como acionista e conselheiro do Carrefour, pedi à empresa que não meça esforços e trabalhe incansavelmente para que os fatos trágicos como estes jamais se repitam no Brasil".

O ÍNDICE ESG

O Carrefour Brasil compõe o índice S&P/B3 Brasil ESG, que procura medir a performance de títulos que cumprem critérios de sustentabilidade e é ponderado pelas pontuações ESG da empresa S&P Dow Jones Indices.

A nota da varejista é 2, de uma máximo de 100, com um peso no índice de 0,099%.

Procuradas, a B3 e a S&P 500 afirmaram por meio de nota que a metodologia do índice exige que incidentes como este sejam totalmente revisados para possível remoção da empresa do índice.

“Ficamos tristes com as imagens horríveis do Carrefour de Porto Alegre. A S&P Dow Jones Indices, sua controladora S&P Global e B3 não toleram racismo ou discriminação de qualquer tipo e levamos esses eventos e a resposta do Carrefour a eles muito a sério”, diz a nota.

As empresas de maior peso no S&P/B3 Brasil ESG são Banco do Brasil, Lojas Renner, Itaúsa, Itaú, Natura, Bradesco, Cemig, WEG, Braskem e Telefônica Brasil (Vivo).

A avaliação ESG é feita por empresas terceirizadas, mediante contratação da empresa a ser avaliada, ou por um ranking de sustentabilidade. Ela não é padronizada e pode priorizar os impactos ambientais ou sociais.

Por sua elevada negociação na Bolsa brasileira, a empresa é elegível para o ISE B3 (índice de sustentabilidade da B3), criado em 2005, mas nunca chegou a fazer parte das empresas selecionadas.

O ISE B3 faz uma análise comparativa sob o aspecto da sustentabilidade corporativa, baseada em eficiência econômica, equilíbrio ambiental, justiça social e governança corporativa das empresas por meio de questionários.

São convidadas para responder o questionário as empresas detentoras das 200 ações mais líquidas na B3. Em 2019, quando foi elaborado o índice em vigor, o Carrefour Brasil estava entre as 178 companhias mais negociadas. Destas, 46 se inscreveram no processo, sendo 36 elegíveis.

Segundo analistas, no Brasil práticas ESG e seu uso como forma de avaliação de empresas ainda é incipiente.

OUTRO LADO

Em nota à Folha, o Carrefour chamou o caso de brutal e disse que todo o resultado de lojas Carrefour no Brasil nesta sexta será revertido para projetos de combate ao racismo no país. E que no sábado (11) todas as lojas do Grupo em todo o Brasil abrirão duas horas mais tarde para reforçar o cumprimento das normas de atuação exigidas pela empresa a seus funcionários e empresas terceirizadas de segurança.

"Reiteramos que, para nós, nenhum tipo de violência e intolerância é admissível, e não aceitamos que situações como estas aconteçam. Estamos profundamente consternados com tudo que ocorreu e acompanharemos os desdobramentos do caso, oferecendo todo suporte para as autoridades locais", afirmou o Carrefour.

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