Duas características marcantes da política americana em relação à China têm sido a instabilidade e a dubiedade. Ao longo do seu mandato, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, alternou momentos de entendimento e confrontação com os chineses. Deu a impressão de nutrir um misto de admiração e valentia diante de Xi Jinping, enquanto sua equipe se dividia entre bombardear o regime político chinês e manter aceso o diálogo sobre temas econômicos.
Nos primeiros anos do governo Trump o clima não teve a animosidade dos tempos recentes. Na visita a Pequim, em 2017, o presidente foi recebido com honrarias especiais, como tomar chá na Cidade Proibida, e acordou com Xi um mecanismo de diálogo apresentado pelos chineses como acelerador da confiança mútua.
Mais adiante, em dezembro de 2019, quando se concluiu a fase 1 do Acordo Bilateral de Comércio, os americanos simplesmente declararam vitória. O comunicado emitido pelo USTr (escritório de representação comercial dos EUA) indicou que o acordo levaria a China a promover reformas estruturais, mudanças no regime de propriedade intelectual, transferência de tecnologia e que nada disso teria sido possível sem a liderança de Trump. Discursos auto-elogiosos são aceitáveis no mundo da política.
O acordo bilateral está gerando o que programou. A China está liberalizando o mercado financeiro —uma demanda americana antiga— e criando espaço para que os bancos e fundos americanos ampliem investimentos no seu mercado.
A resposta tem sido vigorosa, com expressivo aumento de capital americano nos mercados de ações e bônus chineses, apesar da conversa insistente sobre o “decoupling” das economias. As exigências de formação de joint ventures estão se flexibilizando e a primeira empresa a investir no setor automobilístico chinês sem precisar formar uma associação foi a Tesla.
As demandas de transferência de conhecimento são cada vez menos intensas, até porque os chineses já adquiriram um razoável grau de maturidade na geração de tecnologia, e a China parece agora mais atenta à proteção de suas próprias patentes.
Foi a proximidade da campanha eleitoral que deu mais energia ao discurso anti-China do Departamento de Estado americano, enquanto aqui e ali vazavam informações de que os responsáveis por temas econômicos seguiam conversando com os chineses. Trump elevou o tom dos seus próprios comentários mas continua a apresentar um grau elevado de imprevisibilidade na sua conduta. Se vencer, pode tanto criar novas situações de confronto, como pode voltar a se apresentar como amigo e admirador de Xi Jinping.
Biden vitorioso, não está claro que política terá para a China. Mas uma coisa parece certa: a conduta dúbia do governo americano, com autoridades governamentais se comportando de forma diametralmente oposta, será deixada de lado. Deve haver uma visão mais uniforme dos representantes governamentais.
Nossa política para a China tem sido, em larga medida, um espelho da americana. O presidente Jair Bolsonaro foi ao país em outubro de 2019, quando as relações entre China e Estados Unidos passavam por um bom momento. Foi em setembro que se anunciou a negociação do acordo comercial.
Na chegada a Pequim, o presidente brasileiro declarou estar num país capitalista e, no entusiasmo do momento, antes mesmo dos encontros oficiais, fez um discurso em que agradeceu o apoio chinês à soberania brasileira na Amazônia e anunciou uma medida nunca implementada: o fim da exigência de vistos para chineses.
Foi na esteira da mudança do discurso americano que o presidente e seus assessores mais próximos tornaram-se mais ácidos com a China. Mas até o momento, como no próprio caso americano, a visão pragmática prevaleceu. Aqui e ali agentes do governo ou próximos dele excedem-se em comentários ríspidos, mas os vínculos econômicos seguem bem e não há sinais de que o governo queira mudá-los.
Possivelmente, a compra —ou não— da vacina da Sinovac será o próximo teste a indicar se a objetividade e o bom senso continuarão a ser vitoriosos ou cairão por terra.
Com a derrota de Trump, o Brasil perderá o espelho e possivelmente fará menos sentido o tom frequentemente agressivo dirigido aos chineses. Talvez possamos, nós também, encontrar mais uniformidade na ação dos agentes governamentais, abandonar as provocações e confirmar definitivamente o pragmatismo como orientador da conduta no relacionamento com a China.
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