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Em novo livro, Giannetti faz reflexão sobre a ética e seus extremos e nuances

Economista parte de fábula sobre o poder da invisibilidade para descrever e desmontar ideais platônico e cristão de honestidade

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O Anel de Giges

  • Preço R$ 69,90 (320 págs.)
  • Autoria Eduardo Giannetti
  • Editora Companhia das Letras

O que você faria se pudesse ficar invisível?

É em torno desse questionamento singelo que o economista Eduardo Giannetti desenvolve uma elaborada reflexão sobre a ética, tema de seu mais novo livro, “O Anel de Giges”, que chega às livrarias nesta segunda (16).

O objeto que dá nome à obra vem da “República”, de Platão. Como provocação a Sócrates, defensor da ideia de que ser uma pessoa justa é um bem em si —ou seja, independe das vantagens que o comportamento acarreta—, Gláucon, irmão mais velho de Platão, conta a história de Giges.

Na fábula, um camponês (Giges) descobre um anel capaz de torná-lo invisível. De posse do objeto, vai até a sede do reino da Lídia, região que habitava, seduz a rainha, mata o rei e toma posse do trono.

Para Gláucon, portanto, a história mostraria que um cidadão pacato, quando protegido do olhar alheio e do risco de punição, não hesita em obter vantagens para si, violando sem medo preceitos éticos e morais que até então —hipocritamente— respeitava.

Capa do livro "O anel de Giges" de Eduardo Giannetti - Divulgação

Mais: não há possibilidade de agir de outra forma, defende Gláucon, que encara a busca incessante do autointeresse e a felicidade como equivalentes entre si. Nessa visão, diante da garantia de impunidade, não há por que respeitar regras sociais que se interponham entre o sujeito e o benefício almejado.

Em resposta, Sócrates defende que uma pessoa verdadeiramente ética não mudaria em nada sua conduta de posse do anel, uma vez que ser honesto e justo corresponde à felicidade.

Como observa Giannetti, há, portanto, um debate entre a ética como um valor instrumental (um meio para alcançar coisas, utilizado na medida em que for compatível com o autointeresse do indivíduo e jogado fora quando deixa de sê-lo, como defende Gláucon) e como valor intrínseco (um bem em si, como coloca Sócrates).

No pensamento de Platão, o Giges-ideal, modelo de comportamento a ser perseguido pelos guardiões de sua sociedade utópica, é aquele para quem a posse do anel pouco importa. Isso porque ele não se apraz com o aplauso alheio e se orienta apenas em fazer o que é correto e justo (tendo sido moldado pela educação recebida desde a infância).

Em um dos pontos mais interessantes do livro, Giannetti aproxima a ética platônica da cristã.
De modo semelhante ao Giges platônico, o Giges ideal cristão guia-se por uma renúncia de si mesmo: não há espaço para autointeresse egoísta, mas sim uma genuína disposição da alma pelo respeito à lei moral. É ela a sua felicidade.

O economista Eduardo Gianetti - Fabio Braga - 30.jun.2016//Folhapress

Apresentadas as concepções, o autor passa a criticá-las. “O fulcro da ética platônica-cristã é a reconfiguração do campo de forças intrapsíquico mediante a subordinação das pulsões, fantasias e inclinações espontâneas da psique —o mundo-gueto da alma— ao primado de uma vontade ordenadora e à soberania do bem.”

Irrealista, inexequível, indesejável. Alguém que reprima a tal ponto suas paixões a ponto de não ser afetado pela posse do anel não é desejável, em suma. Em algum momento esse dique vai romper.

No outro extremo, tampouco defende-se o Giges inescrupuloso da fábula de Platão como uma visão realista do comportamento humano.

A questão que Giannetti coloca é: existem apenas essas duas possibilidades? Não seriam elas extremos raros no mundo empírico, tipos ideais que obscurecem tudo o que, de fato, encontramos entre um ponto e outro?

Pensando sobre esse ponto, o autor busca um dos clichês em termos de teste de honestidade: a carteira perdida. Um estudo extenso publicado na revista Science em 2019 simulou a perda do objeto, com e sem dinheiro, em diversos países.

Acompanhava a carteira um cartão com um endereço de email (para possibilitar uma tentativa de retorno) e uma lista de compras. O valor contido nas que levavam dinheiro era de US$ 13,45 (ajustado país a país pela paridade do poder de compra).

Contra as apostas de economistas, a taxa de devolução das carteiras foi maior entre aquelas com dinheiro do que nas vazias, em todos os países pesquisados.

O resultado contraintuitivo é atribuído pelos autores a fatores econômicos (a vantagem financeira e o custo de procurar o dono da carteira) e psicológico (altruísmo e não querer sentir-se um ladrão).

Ou seja, há toda uma gradação ética possível, guiada não apenas por uma lógica racional egoísta mas também por elementos subjetivos, como autoimagem e empatia. Giannetti acerta ao bater na tecla da importância dos afetos para a satisfação humana (em mais um clichê: “a felicidade só é real quando compartilhada”).

A discussão que o livro pincela, mas não avança, é o impacto de fatores culturais nessa dispersão. Como mostra o experimento, a taxa de devolução das carteiras cheias e vazias variou enormemente país a país. Outro exemplo citado no livro, sobre diplomatas e multas de trânsito, convida a uma análise semelhante
—mas não é atendido.

Os impulsos, as paixões, os afetos e a empatia que Giannetti com razão destaca são universais e, portanto, não explicam as diferenças culturais em termos de ética observadas.

Essa lacuna na análise se faz sentir quando tentamos fazer a ponte da reflexão ética individual para a coletiva, pensando de que forma o conjunto diverso de tantos Giges possíveis explica sociedades mais ou menos justas e desiguais.

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