Quando me mudei para a Argentina, levei um tempo até entender o funcionamento de uma economia totalmente atrelada ao dólar. Não entendia por que o vendedor de flor, que não utilizava nenhum insumo importado, aumentava o preço das rosas (plantadas em seu próprio quintal) à medida em que cotação do dólar subia.
Um pouco confusa, eu costumava perguntar: por que o pintor cobra em dólares? Por que os aluguéis são negociados em dólares? Nenhuma dessas operações de microeconomia envolve insumos importados e, ainda assim, a formação dos preços para o mercado leva em consideração o câmbio do dia.
O dólar na Argentina não está impregnado apenas na dinâmica da economia. O dólar convive nas famílias e ocupa a cabeça e o coração dos argentinos desde muito pequenos. O amor “al verde” é passado de geração em geração.
A moeda americana representa para o argentino o seu porto seguro, a válvula de escape, o bunker privado de um país marcado por uma história de crises econômicas.
A desconfiança da sociedade da própria moeda é um dos principais fatores das recorrentes crises, mas não é o único. Como confiar seus investimentos e poupança em uma moeda nacional que muda de valor o tempo todo? Como colocar o seu suado dinheiro no banco se a qualquer momento pode ocorrer um “coralito”, a exemplo do que houve em dezembro de 2001, quando o então presidente Fernando de La Rúa proibiu a retirada de valores de contas correntes e poupanças para evitar o envio de dólares para o exterior?
As pessoas ou empresas que venham a residir ou fazer negócios na Argentina precisam aprender a administrar as suas economias levando em consideração pelo menos duas cotações diárias do dólar: a oficial, publicada pelo Banco Central, e a cotação chamada de dólar blue, o câmbio paralelo.
Atualmente o dólar blue é cotado em aproximadamente 160 pesos argentinos, o dobro do câmbio oficial, que é de aproximadamente 80 pesos. Portanto, a pessoa que tem dólares guardados pode adquirir bens e serviços por menos da metade do valor que paga aquela pessoa que não guardou dólares.
Um exemplo para ilustrar essa dinâmica perversa: um automóvel anunciado por 500 mil pesos representa US$ 6.250. O sujeito que tem dólares guardados irá trocar cada dólar por 160 pesos no câmbio blue, e esse mesmo carro custará para ele US$ 3.125, metade do valor pago pela pessoa que não tem dólares embaixo do colchão.
A inflação real acompanha o dólar blue, mas o índice oficial do governo, feito pelo Indec, calcula a inflação publicada com base no dólar oficial. Como consequência, as pessoas não levam em consideração o Indec, o que faz crescer a desconfiança.
Como o peso vale cada vez menos, está mais difícil para a classe média poupar em dólares, aumentando o abismo financeiro entre aqueles que podem comprar e juntar dólares e aqueles que são obrigados a viver com pesos argentinos. Todos esses aspectos somados ao enorme déficit fiscal e à instabilidade institucional acabam por causar pobreza e desigualdade social.
Com o objetivo de conter a pobreza, o governo distribui pesos para a população –é a chamada “Asignación Universal”, uma espécie de Bolsa Família argentina. Esses pesos, no entanto, não possuem lastro na reserva. São emissões de papel moeda que desvalorizam cada vez mais o dinheiro nacional e que vêm derrubando o poder de compra.
Para evitar a fuga de dólares, os governos historicamente fizeram malabarismos, aumentando ainda mais a desconfiança no país. Enquanto a Argentina não encontrar uma solução para o seu problema principal, que é a moeda, as crises não acabarão nunca mais.
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