Descrição de chapéu
Carla Amaral de Andrade Junqueira

Enquanto Argentina não resolver problema da moeda nacional, crises não faltarão

Para evitar fuga de dólares, governos historicamente fizeram malabarismos, aumentando ainda mais a desconfiança no país

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Carla Amaral de Andrade Junqueira

Advogada, é doutora em direito internacional pela Faculdade de Direito da USP e pela Universidade de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne

Quando me mudei para a Argentina, levei um tempo até entender o funcionamento de uma economia totalmente atrelada ao dólar. Não entendia por que o vendedor de flor, que não utilizava nenhum insumo importado, aumentava o preço das rosas (plantadas em seu próprio quintal) à medida em que cotação do dólar subia.

Um pouco confusa, eu costumava perguntar: por que o pintor cobra em dólares? Por que os aluguéis são negociados em dólares? Nenhuma dessas operações de microeconomia envolve insumos importados e, ainda assim, a formação dos preços para o mercado leva em consideração o câmbio do dia.

O dólar na Argentina não está impregnado apenas na dinâmica da economia. O dólar convive nas famílias e ocupa a cabeça e o coração dos argentinos desde muito pequenos. O amor “al verde” é passado de geração em geração.

A moeda americana representa para o argentino o seu porto seguro, a válvula de escape, o bunker privado de um país marcado por uma história de crises econômicas.

Homem segura 500 pesos argentinos
Como confiar seus investimentos e poupança em uma moeda nacional que muda de valor o tempo todo? - Martín Zabala/Xinhua

A desconfiança da sociedade da própria moeda é um dos principais fatores das recorrentes crises, mas não é o único. Como confiar seus investimentos e poupança em uma moeda nacional que muda de valor o tempo todo? Como colocar o seu suado dinheiro no banco se a qualquer momento pode ocorrer um “coralito”, a exemplo do que houve em dezembro de 2001, quando o então presidente Fernando de La Rúa proibiu a retirada de valores de contas correntes e poupanças para evitar o envio de dólares para o exterior?

As pessoas ou empresas que venham a residir ou fazer negócios na Argentina precisam aprender a administrar as suas economias levando em consideração pelo menos duas cotações diárias do dólar: a oficial, publicada pelo Banco Central, e a cotação chamada de dólar blue, o câmbio paralelo.

Atualmente o dólar blue é cotado em aproximadamente 160 pesos argentinos, o dobro do câmbio oficial, que é de aproximadamente 80 pesos. Portanto, a pessoa que tem dólares guardados pode adquirir bens e serviços por menos da metade do valor que paga aquela pessoa que não guardou dólares.

Um exemplo para ilustrar essa dinâmica perversa: um automóvel anunciado por 500 mil pesos representa US$ 6.250. O sujeito que tem dólares guardados irá trocar cada dólar por 160 pesos no câmbio blue, e esse mesmo carro custará para ele US$ 3.125, metade do valor pago pela pessoa que não tem dólares embaixo do colchão.

A inflação real acompanha o dólar blue, mas o índice oficial do governo, feito pelo Indec, calcula a inflação publicada com base no dólar oficial. Como consequência, as pessoas não levam em consideração o Indec, o que faz crescer a desconfiança.

Como o peso vale cada vez menos, está mais difícil para a classe média poupar em dólares, aumentando o abismo financeiro entre aqueles que podem comprar e juntar dólares e aqueles que são obrigados a viver com pesos argentinos. Todos esses aspectos somados ao enorme déficit fiscal e à instabilidade institucional acabam por causar pobreza e desigualdade social.

Com o objetivo de conter a pobreza, o governo distribui pesos para a população –é a chamada “Asignación Universal”, uma espécie de Bolsa Família argentina. Esses pesos, no entanto, não possuem lastro na reserva. São emissões de papel moeda que desvalorizam cada vez mais o dinheiro nacional e que vêm derrubando o poder de compra.

Para evitar a fuga de dólares, os governos historicamente fizeram malabarismos, aumentando ainda mais a desconfiança no país. Enquanto a Argentina não encontrar uma solução para o seu problema principal, que é a moeda, as crises não acabarão nunca mais.

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