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Luca Belli

Estados Unidos, espionagem e China: nova guerra fria e velha hipocrisia

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Luca Belli

Professor da FGV Direito Rio, onde coordena projeto CyberBRICS

Semana passada, o governo brasileiro anunciou a intenção de se juntar ao programa Clean Network, lançado pelos Estados Unidos para limitar a expansão de tecnologia chinesa.

O anúncio surpreendeu especialistas do setor digital ao passo que parece ser baseado numa postura ideológica mais que pragmática.

Os Estados Unidos têm cooptado aliados na inciativa que almeja “limpar” as redes da tecnologia chinesa – principalmente, equipamento 5G, aplicativos e serviços de cloud computing – por suposto risco de espionagem de Pequim.

Porém, nesse contexto de verdadeira guerra fria digital, nenhuma evidência foi apresentada, até hoje, para suporta as acusações de espionagem por meio de tecnologia chinesa.

Paralelamente, a revista Vice acaba de publicar uma detalhada reportagem sobre como o exército estadunidense estaria comprando maciçamente dados pessoais coletado por uma ampla gama de aplicativos, para processá-los para finalidade de espionagem no âmbito de ações de contraterrorismo.

O mecanismo de espionagem descrito pela reportagem baseia-se em larga medida na compra de dados pessoais sobre localização de usuários de apps, como aplicativos de namoro, aplicativos de oração muçulmanas que localizam fiéis e indicam a direção da Meca, dentre vários outros.

O interesse particular em apps utilizados por muçulmanos é preocupante, não somente considerando o caráter sensível dos dados que dizem respeito às convicções religiosas, mas porque, como destaca a reportagem, existem evidências de que dados de localização sejam utilizados para direcionar ataques de drones do exército estadunidense.

É claro que a coleta de dados é essencial para executar atividades de inteligência, mas tais atividades nunca podem estar excluídos de mecanismos de garantia do devido processo. Esse é, inclusive, o argumento central da Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que, em julho, invalidou a transferência de dados pessoais europeus para os EUA.

A falta de perímetros claros nos programas de vigilância do governo norte-americano apurada pelo TJUE parece corroborada pela reportagem. As agências de inteligência dos EUA estariam comprando acesso para dados sensíveis, desrespeitando normas básicas de proteção de dados.

Um ponto essencial desse esquema é que uma das empresas que age como “corretora de dados”, adquirindo informações de apps e vendendo-as às agências de inteligência, a X-Mode, no seu próprio site gaba-se de coletar dados de até 10% da população de Brasil, Canadá, França e vários outros países.

Parece pura e simplesmente impossível que a coleta e venda de dados pessoais de 10% da população brasileira seja efetuada em conformidade à nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que se aplica a qualquer entidade – nacional ou estrangeira – que processe dados de cidadãos brasileiros.

Tal cenário de coleta maciça de dados pessoais para a venda a agências de inteligência parece descumprir quase todos os princípios básicos da LGPD, como transparência, adequação, segurança, especificação da finalidade do processamento, e não discriminação.

Nesse cenário, parece curioso que sejam empresas chinesas aquelas que estão sendo excluídas da infraestrutura digital brasileira por suposta – e por enquanto nunca comprovada – espionagem.

Enquanto isso, é louvada a “segurança” de uma iniciativa de “redes limpas” organizada pelo único País sobre o qual existem evidências incontestáveis de espionagem tecnológica, que chegou até a grampear Presidentas de Nações aliadas.

Como destacado recentemente pelo Secretário de Negociações Regionais nas Américas, Pedro Miguel da Costa e Silva, recebendo o homólogo estadunidense, Keith Krach:

“O Brasil apoia os princípios [...] destinados a promover no contexto do 5G e outras novas tecnologias um ambiente seguro, transparente e compatível com os valores democráticos e liberdades fundamentais.”

Tais princípios são fundamentais e é essencial que qualquer provedor de tecnologia respeite os padrões mais avançados de cibersegurança, inclusive no que diz respeito à proteção de dados pessoais, e que o respeito a tais normas seja fiscalizado com o maior rigor e independência pelas autoridades brasileiras.

Porém, os fatos nos indicam que tais critérios parecem ser aplicados de maneira discricionária.

Além da China ser o principal parceiro econômico do Brasil, provedores de tecnologia chineses estão no país há décadas. Uma empresa como a Huawei, explicitamente visada pela Clean Network, já desenvolveu amplas partes das redes 3G e 4G que compõem a infraestrutura digital brasileira.

Porém, até hoje, nenhuma evidência de espionagem por meio de tecnologia chinesa foi apresentada pelas autoridades brasileiras ou de outros países.

Na atual guerra fria digital, é essencial adotar uma visão sistêmica, analisar o cenário internacional e tecnológico na sua complexidade e elaborar decisões pragmáticas, baseadas em evidências.

Tomar escolhas baseadas em ideologias ao invés de fatos é altamente arriscado. Apesar da qualificação termométrica da guerra, seja ela fria ou mais morninha, as consequências de ações impulsivas são sempre caras.

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