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Katie Martin

Mercado financeiro errou na leitura da eleição dos EUA

Após se frustrarem com 'onda azul', investidores adotam narrativa otimista sobre um governo dividido

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Katie Martin
Londres | Financial Times

Os investidores são péssimos ao enquadrar grandes eventos políticos em suas transações. O mais recente exemplo, é claro, vem das eleições nos Estados Unidos, que eles leram incorretamente mais uma vez.

Convencidos por pesquisas de opinião pública que apontavam para uma grande vitória do candidato presidencial democrata Joe Biden, e de seus colegas de partido que disputavam posições no Senado, muitos deles apostaram em “operações de reflação” –ou seja, em que um grande salto de gastos públicos cobertos por déficits fiscais daria empuxo à inflação moribunda, enfraquecendo os títulos do governo americano e o dólar, em consequência.

Em lugar disso, Biden parece estar engatinhando rumo à vitória, e o Senado provavelmente continuará sob controle dos republicanos.

As operações “blue wave” [onda azul – azul é a cor associada ao Partido Democrata], arruinaram, portanto, o que gerou a maior alta nos títulos de 10 anos do Tesouro americano desde março, e uma das maiores recuperações nas cotações de títulos do governo americano depois de qualquer eleição, pelo menos nas duas últimas décadas.

Trabalhadores limpam o chão da Bolsa de Nova York (Nyse)
Operações da 'onda azul' arruinaram a maior alta nos títulos de 10 anos do Tesouro americano - Lucas Jackson - 11.set.2020/Reuters

A troca de acusações já começou. Jim Reid, estrategista do Deutsche Bank, definiu o acontecido como “um dos piores desempenhos das pesquisas de opinião pública na História”. Didier Saint-Georges, membro do comitê de investimento estratégico do grupo francês de investimento Carmignac, disse que seus colegas que haviam confiado nas pesquisas deveriam “reconsiderar seriamente os seus sistemas”.

Há um argumento razoável: como é que os participantes do mercado podem tentar ler situações políticas se os nerds da política tampouco parecem capazes de fazê-lo?

Os investidores fracassaram, espetacularmente, em prever o resultado do referendo sobre o Brexit em 2016, o que resultou em uma queda histórica da libra, naquele momento. Mais tarde no mesmo ano, também foram incapazes de prever a vitória presidencial de Donald Trump, causando uma queda breve mas feia das ações antes de os mercados embarcarem na agenda política do governo, que previa grandes cortes de impostos para as empresas.

Portanto, não terá sido tolo acreditar nas pesquisas e mergulhar convictamente nas transações “blue wave”?

Para crédito da maioria dos investidores, eles não parecem tê-lo feito. Pode ser que não sejam muito competentes em prever eleições, mas estão cientes do fato. As operações de reflação foram se acumulando e de repente explodiram. Mas os investidores não se arriscaram demais.

O banco JPMorgan Chase apontou que as apostas no mercado de títulos do Tesouro haviam crescido para níveis superiores à média. Mas os mercados monetários ainda assim se movimentaram para incorporar aos preços apenas uma alta na taxa de juros de referência americana até o final de 2023, e duas até o final do ano seguinte. “Seria um exagero dizer que os investidores se posicionaram com antecedência para uma mudança de regime em termos de política fiscal e perspectivas de inflação”, disse John Normand, do JPMorgan Chase.

De forma semelhante, a adesão a transações “blue wave” no mercado de ações –apostas em “value stocks” [ações subvalorizadas com relação ao desempenho da companhia], ações cíclicas e ações com exposição ao mercado asiático– havia em geral sido “pequena demais para indicar um comprometimento forte”.

O estrago causado aos portfólios por essa aposta frustrada na reflação foi, na melhor das hipóteses, modesto. Em acentuado contraste com as cenas caóticas vistas nos mercados depois do referendo do Brexit e na noite da vitória de Trump, as transações no overnight foram calmas, ordeiras e, para certas categorias de ativos, inferiores à média diária.

O caminho prudente agora, portanto, seria esperar pelos resultados finais da eleição, tanto a presidencial quanto para o Congresso, antes de alterar portfólios. Alguns investidores estão fazendo exatamente isso. “Operar com base no resultado da eleição não faz sentido em um ambiente como o atual”, disse Fabiana Fedeli, vice-presidente mundial de ações fundamentais na administradora de patrimônio Robeco, quarta-feira (4), o dia seguinte à votação. Há outros financistas instando da mesma maneira por paciência e cautela.

Mas isso claramente não se aplica a todos.

Tão logo as transações “blue wave” desabaram, uma nova narrativa começou a ser criada: a de que um presidente democrata e um Congresso dividido era de alguma forma o resultado ideal da eleição, “o ponto perfeito em termos de ativos cruzados”, nas palavras do banco holandês ING.

As ações americanas, especialmente, sofreram uma disparada na quarta-feira. O índice Nasdaq 100 ganhou 4,4% –sua maior alta desde abril. O S&P 500, mais amplo, enquanto isso, registrou alta de 2%, no maior avanço já registrado em um dia seguinte à votação presidencial americana. As ações continuaram a subir na quinta-feira (5)

Não muito tempo atrás, o refrão era o de que um resultado dividido ou contestado seria um desfecho terrível para os mercados.

Agora, Trump está cumprindo sua promessa de contestar o resultado antes mesmo que este tenha sido computado totalmente, e parece provável que haja divisão entre presidência e Senado. Mas a nova narrativa, criada às pressas, é a de que governos divididos são menos intrusivos, menos dispostos a impor aumentos da carga tributária e regulamentação às empresas americanas, mas que ainda assim, caso Biden triunfe, estarão dispostos a levar adiante as medidas de apoio fiscal. Presumindo que a perspectiva com relação ao coronavírus melhore, isso deve estimular o mercado de ações, que já vinha em forte alta desde março.

A aposta parece arriscada, talvez ainda mais arriscada do que a aposta na reflação. Diante de uma pandemia que requer resposta urgente do governo para apoiar a economia, a confiança no impasse pode se provar errônea.

Além disso, caso Trump esteja mesmo de saída da Casa Branca, o que de forma alguma pode ser aceito como decidido, ele ainda reterá a capacidade de causar tropeços ao mercado de ações em suas semanas finais de mandato. “Há incerteza sobre as políticas que o presidente Trump pode adotar antes da posse de seu sucessor”, apontou Paul Donovan, economista chefe da UBS Global Wealth Management, divisão de gestão de patrimônio do banco suíço UBS. “A política comercial é algo que está sob controle do comandante em chefe, e é um foco óbvio”.

A despeito de sua reputação justificada de errar quanto às eleições, os investidores em geral passaram com tranquilidade pela votação nos Estados Unidos. É estranho que tantos deles estejam se apressando a extrair conclusões benignas agora.

Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

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