Pioneirismo e solidão marcam ascensão de empresários negros

Para empreendedores, falsa ideia de que não há racismo no Brasil retarda mudanças no mercado de trabalho e nas empresas

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São Paulo

Ser um empresário negro no Brasil é ter de aprender a conviver com o fato de ser um dos únicos —quando não, o único mesmo— com a cor da sua pele entre homens e mulheres que estão no mesmo status corporativo. Essa percepção foi repetida por todos os empresários desta reportagem.

É também ter de se preocupar com pequenas coisas do dia a dia que nem passam pela cabeça das pessoas brancas. Um gerente de banco negro, por exemplo, tem que tomar o cuidado de não usar terno preto com camisa branca para não ser confundido com o segurança da instituição financeira.
Parece exagero? Pois esse exemplo é real.

“Quando eu trabalhava no HSBC, sempre fui um dos melhores, com os melhores resultados. Mas não podia usar qualquer roupa. Sempre privilegiei camisas coloridas e gravatas diferentes para não ser confundido com o segurança”, diz Luciano Machado, cofundador da MMF Projetos, da área de projetos de engenharia de infraestrutura.

Empreendedores falam sobre as dificuldades de ascensão de empresários negros no Brasil - Montagem

Formado em engenharia, Machado conta que sempre foi o único negro nas equipes em que trabalhou em empresas como Telefónica e Tigre. No seu próprio negócio, fundado em 2014, fez questão de mudar esse cenário. Orgulha-se de ter contratado, desde o início, pessoas negras para compor o time.

“Cerca de 30% são negros, e ainda é pouco ao olharmos o todo, mas é muito quando comparamos com outras empresas do setor”, diz.

O empresário Sérgio All, cofundador da Conta Black, também tem o status de abrir caminhos em sua área de atuação. All foi o primeiro negro a fundar uma fintech no país. E, no caso dele, a ideia de ter um banco digital para atender todos os públicos, mas principalmente os negros, surgiu de uma necessidade.

Estudos mostram que negros têm três vezes mais chance de ter o crédito negado no Brasil. Foi o que aconteceu com All. Publicitário bem-sucedido, resolveu trocar os computadores de sua agência.

“A conta no banco tinha cerca de dez anos, eu tinha faturamento, tinha garantias, mas não consegui o crédito”, afirma. Foi um baque que o fez recordar sua trajetória.

“Minha mãe falava que em primeiro lugar tenho que zelar pelo meu nome, que tinha que estudar, me formar”, diz. “Fui criado por princípios, segui a cartilha e fiquei frustrado por não ter conseguido algo a que tinha direito.”

A partir daí, All resolveu criar uma empresa focada em assessoria financeira e estudou o mercado por cerca de dez anos antes de abraçar a ideia que o levaria à fintech. “Percebi que não adiantava oferecer capacitação e novos negócios, se o empreendedor teria a dificuldade de conseguir crédito”, afirma.

“E entendemos o sistema, não precisava fazer análise, só precisamos de um documento válido, para que a pessoa tivesse o orgulho de ter uma conta”, afirma o publicitário. Atualmente, a instituição financeira tem 10 mil contas ativas.

Dialogar com o público negro sempre foi uma das especialidades de Claudia Alexandre. Ela foi a primeira negra locutora de rádio líder de audiência em São Paulo, no final da década de 1990.

Ela conta que pediu demissão no início dos anos 2000, quando percebeu que mesmo líder de audiência tinha salários e condições piores do que outros locutores brancos. Montou uma agência de comunicação e, há dois anos, criou a BR Brazil Show, rádio digital com programação 24 horas por dia voltada ao samba.

Segundo ela, a plataforma conseguiu 29 milhões de acessos nesse período. “Temos entrevistas, podcast, música e tudo voltado para o samba: resolvi criar a rádio porque percebi que era um espaço em que o samba não estava mais”, diz ela. “Os artistas do samba não sabiam mais como dialogar.”

O escritor Maurício Pestana, que lançou recentemente o livro “A Empresa Antirracista”, elenca alguns motivos das mudanças nas empresas.

“Hoje há um número maior de afrodescendentes mais escolarizados e antenados: o empresário que tem que olhar para esse contingente de possíveis consumidores e dialogar com eles para vender seu produto”, afirma Pestana.

No entanto, Pestana diz que ainda existem dois tipos de empresários: os que realmente se preocupam com o aumento da diversidade e os que tentam sair bem na foto, mas não querem participar do filme.

A empresa de César Nascimento, a Integrare, sofre na pele essas questões. Fundada no início da década de 2000, a ONG funciona como um intermediador e coloca em contato grandes empresas com pequenos fornecedores comandado por pessoas que se encaixem em um dos três pilares: afrodescendentes, indígenas e pessoas com deficiência.

“Costumo dizer que nosso grande objetivo é fazer um elefante dançar com uma formiguinha”, diz Nascimento.

O modelo de negócio foi baseado na National Minority Business Council, fundada em 1972 nos Estados Unidos. Nascimento conta que teve uma grande inspiração quando a conheceu por dentro.

“Acreditava que seria uma moleza convencer a replicar o modelo, mas foi uma grande frustração porque, aqui no Brasil, há 20 anos, ninguém falava em diversidade e quem conhecia o termo, mandava a gente para o RH”, diz Nascimento.

Ele conta que o que faz diferença no sucesso da parceria é o engajamento do que ele chama de C-Level, ou seja, dos cargos de presidência e diretoria.

Nos últimos dez anos, a Integrare foi responsável por intermediar cerca de R$ 500 milhões em negócios de pequenos fornecedores, normalmente excluídos das grandes cadeias, com as grandes empresas nacionais e multinacionais.

Nascimento acredita que a lenta ascensão de negros no mercado de trabalho e nas empresas está associada à falsa ideia de que não há racismo no Brasil e, por isso, o país não precisa de políticas afirmativas.

O empresário Paulo Nogueira concorda, mas a partir de outro ponto de vista: a segregação nos Estados Unidos. Cofundador da Vale do Dendê, organização que tem como objetivo fomentar ecossistemas de inovação e criatividade com foco em diversidade, ele diz que a formalização do separatismo racial nos EUA moveu o negro americano.

“É muito curioso. São países parecidos. O que diferencia os dois é segregação racial formal, por lei”, diz ele.

“No Brasil, nunca tivemos algo tão formal e unilateral. Lá, como a segregação amparada pela Justiça, os brancos se negavam a abrir negócios em comunidades negras, e isso acabou forçando os negros a abrir todo tipo de empresas, até bancos.”

Segundo ele, as cotas raciais implantadas nas universidades também são um fator muito importante nas mudanças implementadas no mundo corporativo nos últimos anos.

“Isso faz com que hoje tenha uma geração de pessoas negras maduras profissionalmente. São médicos, engenheiros e advogados”, diz.

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