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Coronavírus

Efeitos colaterais da Covid sobre a integração latino-americana

Há o risco de que, como resultado da pandemia, o peso da América Latina na economia mundial continue a diminuir

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Detlef Nolte

Cientista político e pesquisador associado do German Institute for Global and Area Studies (Giga) e do German Council on Foreign Relations (DGAP). Foi diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos e vice-presidente do Instituto de Estudos Globais e de Área do Giga.

Latinoamérica21

Em meados de novembro, durante um evento organizado pelo Banco Central da República Argentina, a secretária executiva da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) comentou que "retrocedemos em termos de integração regional".

Alicia Bárcena tem toda a razão. A pandemia de Covid-19 produziu efeitos colaterais para os processos de integração regional. A Covid-19 desembarcou na América Latina e no Caribe em um momento de grande vulnerabilidade e fragilidade de suas economias e instituições multilaterais.

Alicia Bárcena, secretária-executiva da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, participa do Fórum Econômico Mundial, em São Paulo
Alicia Bárcena, secretária-executiva da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, participa do Fórum Econômico Mundial, em São Paulo - Eduardo Anizelli - 14.mar.2018/Folhapress

Ela explodiu quando o regionalismo já estava em crise, com a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) em processo de dissolução, a Comunidade dos Estados da América Latina e Caribe (Celac) semiparalisada, e um Mercado Comum do Sul (Mercosul) em busca de sua missão e sua futura inserção na economia global.

A pandemia tem repercussões multidimensionais para o regionalismo latino-americano.

Na esfera econômica, a pandemia aprofundou a crise. Após o fim do boom das matérias-primas, no período 2014-2019, a taxa de crescimento do PIB regional (0,4%) foi a menor desde a década de 1950.

Segundo o prognóstico mais recente do FMI de outubro, o PIB da América Latina e do Caribe se contrairá 8,1% em 2020 e se recuperará 3,6% em 2021. A médio prazo, lidar com a crise econômica dominará a política na América Latina.

A predominância do setor primário nas exportações dos países latino-americanos tem sido um grande obstáculo para alcançar uma maior regionalização econômica, baseada em setores industriais e na criação de cadeias de valor regionais.

As sequelas da pandemia poderiam aumentar a dependência econômica da China e, assim, intensificar ainda mais a repressão das economias.

Enquanto no primeiro semestre de 2020 as exportações da América Latina para os Estados Unidos (-19,5%) e a União Europeia (-18,6%) caíram significativamente, a redução das exportações para a China foi muito menor (-1%); e as exportações do Mercosul para a China aumentaram 13,2%.

É marcante o caso do Brasil, onde a soja representou 43% das exportações para a China.

A crise causada pela Covid-19 tem um impacto negativo sobre o comércio intrarregional.

Segundo as estatísticas do BID-INTAL, os fluxos comerciais intrarregionais já haviam caído 8,3% em 2019. Como resultado da recessão causada pela Covid-19 no primeiro semestre de 2020, o comércio intrarregional caiu mais 23,2%. Como resultado, o coeficiente de comércio intrarregional para a América Latina caiu para 11%, com valores muito mais baixos a nível sub-regional (com exceção da América Central).

Segundo os cálculos da Cepal, a participação do comércio intrarregional no comércio total caiu para 9% no Mercosul, 7,3% na Comunidade Andina e 2,7% na Aliança do Pacífico. A título de comparação, na UE é superior a 60%. Para dar um novo impulso ao regionalismo latino-americano, a integração econômica deve ser promovida e aprofundada.

A crise da Covid-19 expôs impiedosamente os déficits estruturais do regionalismo latino-americano. Uma crise também pode ser uma oportunidade. Mas isso requer liderança e uma agenda comum.

A União Europeia (UE), por exemplo, tem demonstrado que está preparada para reagir no caso de crises profundas. Parece que, em última instância, a pandemia tem conduzido a um fortalecimento da UE por meio de um pacote de revitalização econômica em uma escala sem precedentes que inclui um endividamento europeu comum para seu financiamento. Há também coordenação entre os estados-membros e a UE quando se trata de comprar vacinas.

Em contraste, a pandemia evidenciou mais uma vez as deficiências do regionalismo latino-americano.

Atualmente, não há liderança suficientemente forte na América Latina (seja singular ou compartilhada) que possa promover projetos regionais ou acabar com a paralisia que algumas das organizações regionais estão sofrendo.

Pior ainda, o que pode ser observado é uma liderança negativa do Brasil (e em alguns aspectos também do México) durante a pandemia. Nem o Brasil nem o México têm sido um modelo para lidar com a Covid-19.

O México, no âmbito de sua presidência "pro tempore" da Celac, tentou ao menos colocar o assunto na agenda do debate latino-americano. O Brasil renunciou a todas as reivindicações de liderança no tema da pandemia na agenda regional e não demonstrou nenhuma vontade de participar ativamente na formação do mundo posterior à Covid-19.

Na ausência de uma liderança regional, os atores externos poderiam impulsionar a integração regional. Mas também aqui a constelação internacional é bastante desfavorável.

A UE, que apoiou processos de integração regional no passado, está atualmente muito ocupada consigo mesma e revela uma falta de visão estratégica a longo prazo.

O acordo com o Mercosul poderia dar um maior protagonismo internacional a esse bloco regional. Mas o acordo está no limbo por causa dos incêndios na Amazônia e do protecionismo para o setor agrícola da UE.

Deve-se admitir também que a política populista de Bolsonaro e a crise permanente na Argentina não fazem do Mercosul um parceiro particularmente atraente no momento.

A UE compete na América Latina com a China e os Estados Unidos. Embora essa competição possa ter efeitos positivos no regionalismo latino-americano, esse não é o caso do conflito entre a China e os Estados Unidos.

Enquanto a China utiliza a rápida recuperação econômica para expandir sua influência na América Latina, os Estados Unidos estão praticando uma política de contenção econômica em relação à China na região.

Isso resultou em uma maior politização das relações comerciais com a América Latina. A atração econômica da China e a pressão política dos EUA estão tendo um efeito negativo sobre a integração regional. Em vez de fortalecer a coesão regional e conduzir a uma ação coordenada, as forças centrífugas estão aumentando.

A pandemia ainda não terminou. De uma perspectiva otimista, pode-se dizer que o processo de desintegração na América Latina, que culminou com a retirada de quase todos os países membros da Unasul, não continuou.

Mas parece que foi mais resultado da inércia institucional do que da resiliência do regionalismo latino-americano. Não houve uma resposta mais abrangente e coordenada para enfrentar os muitos desafios colocados pela pandemia.

Surge a pergunta: as organizações regionais latino-americanas estão adequadamente preparadas e equipadas para os desafios do mundo pós- Covid-19?

Em seu discurso, Alicia Bárcena lamentou que, no processo de reorganização econômica do mundo, "nossa região não define sua estratégia".

Existe o risco de que, como resultado da pandemia, o peso da América Latina na economia mundial continue diminuindo e seu papel se limite ao de um fornecedor de matérias-primas.

A América Latina não tem voz no debate sobre os desafios atuais da política internacional e o futuro da ordem global. Atualmente não há razão para ser otimista.

www.latinoamerica21.com, um projeto pluralista que dissemina conteúdos produzidos por especialistas na América Latina.

Tradução de Maria Isabel Santos Lima

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