Fim prematuro do auxílio emergencial pode prejudicar recuperação do Brasil, diz diretora do FMI

Georgieva afirma que autoridades devem buscar recuperação econômica ao mesmo tempo que protegem mais pobres

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Washington

O fim prematuro do auxílio emergencial pode significar obstáculos à recuperação econômica, aumento da desigualdade e fazer com que o Brasil alcance a marca total de 24 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza. As estimativas são de Kristalina Georgieva, diretora do FMI (Fundo Monetário Internacional), ao falar sobre o benefício de R$ 300 pago pelo governo Jair Bolsonaro para aliviar famílias pobres do impacto da pandemia.

O presidente brasileiro disse que não vai estender o auxílio para além de 31 de dezembro, mas Kristalina alerta que “cortar essa corda de salvamento” cedo demais pode ser perigoso. A economista defende que países que ainda têm espaço fiscal devem utilizá-lo para acelerar a recuperação econômica, mas, no caso do Brasil, diz que essa margem é limitada e que as autoridades precisam se comprometer com o teto fiscal ao mesmo tempo em que protegem a população mais vulnerável.

Kristalina conversou com a Folha, El País (Espanha) e Excélsior (México) nesta terça-feira (15), após evento para debater a crise na América Latina —a região concentra 8% da população mundial e é uma das mais atingidas pela pandemia, com 20% dos casos e 30% das mortes por Covid-19.

Kristalina Georgieva durante entrevista, nesta terça (15) - Divulgação FMI

Raio-x

Kristalina Georgieva, 67 anos, economista formada na Universidade Harvard. Foi diretora-geral do Banco Mundial entre 2017 e 2019, é a atual diretora do Fundo Monetário Internacional​


Segundo Kristalina, o início da vacinação em países como EUA e Reino Unido ainda em 2020 é “boa notícia”, mas o cenário global não vai melhorar de forma instantânea, principalmente se houver atrasos em nações que ainda não têm um plano de imunização nacional detalhado, como é o caso do Brasil. “Infelizmente, temos que reconhecer que, se a vacinação for retida em algumas partes do mundo, isso trará mais irregularidades na recuperação econômica.”

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Existe uma correlação entre a vacinação contra a Covid-19 e a recuperação econômica? Países que estão atrasados para desenvolver um plano nacional de vacinação, como o Brasil, podem ter recuperação mais lenta?

Em outubro, quando publicamos as projeções para 2020 e 2021, as premissas básicas que fizemos foi de que as vacinas estariam disponíveis até o fim de 2021 e que, no final de 2022, teríamos todo o mundo vacinado. Com base nisso, projetamos uma contração muito dramática para 2020, de menos 3,3% para mercados emergentes e menos 8% na América Latina.

Nesse contexto, é muito claro que há boas notícias nas vacinas se tornando disponíveis mais cedo, mas também vemos uma segunda onda de transmissões [de Covid-19] impactando massivamente Europa, EUA e países na América Latina. Isso torna complicada a notícia da transição para a recuperação em 2021.

Quando você olha para o grau de preparação para a vacinação, claramente, alguns países da América Latina agiram mais rápido para garantir a vacinação de 100% de sua população, como Chile, Costa Rica e México. Depois, vemos outros um pouco atrás, e isso é uma preocupação para os formuladores de políticas públicas porque, quanto mais rápido pudermos avançar a vacinação em todas as pessoas e lugares, melhor será o resultado da recuperação econômica. Infelizmente, temos que reconhecer que, se a vacinação for retida em algumas partes do mundo, isso trará mais irregularidades na recuperação.

Fizemos um trabalho aqui no Fundo com a seguinte pergunta: qual é a diferença entre a vacinação acelerada em todos os lugares versus vacinação de sequenciamento, em que as economias avançadas vão mais rápido, alguns mercados emergentes vão mais rápido, mas o resto do mundo vai devagar? Entre 2020 e 2025, a diferença é de incríveis US$ 9 trilhões. Quase 60% disso iria para os mercados emergentes, mas cerca de 40% beneficiariam as economias avançadas devido à elevação do crescimento global, reduzindo a incerteza e retrocessos.

Kristalina Georgieva durante entrevista, nesta terça (15) - Divulgação FMI

Países da América Latina e outros em desenvolvimento enfrentam dificuldades entre gastar para recuperar a economia e aumentar a dívida a níveis insustentáveis. Como lidar com as crescentes necessidades sociais impostas pela pandemia e a desigualdade e, ao mesmo tempo, evitar a pressão das finanças públicas?

O que sabemos por experiência é que uma pandemia leva a mais desigualdade. Há uma necessidade muito premente de enfocar a questão de quem é o mais severamente impactado pela pandemia e quais opções de políticas existem para evitar que a desigualdade se aprofunde.

Trabalhadores pouco qualificados, mulheres, jovens são os mais afetados e sabemos que, em todas essas três categorias, antes da pandemia havia problemas. E agora esses problemas são ampliados.

Então, o que deve ser feito? Em primeiro lugar, o apoio público que agora é fornecido em uma escala muito significativa, 8% do PIB em medidas fiscais na América Latina, precisa gradualmente ser mais bem direcionado para partes da economia e trabalhadores e desempregados que estão nesta categoria mais severamente afetados. Em segundo lugar, investir em educação. Em terceiro, criar mais oportunidades de empreendedorismo, especialmente para os jovens. Os déficits estão subindo na América Latina.

Alguns países ainda podem fazer mais, como México, Chile, Peru ou Colômbia, onde ainda há algum espaço fiscal para ação.Alguns países não, porque já fizeram muito, como o Brasil. E o Brasil também tem uma limitação de quão longe pode ir. Eles têm uma regra fiscal [teto] ou não tinham espaço fiscal para começar.

Portanto, há um ritmo para se beneficiar de taxas de juros muito baixas, e os países têm que mudar gradualmente o apoio, priorizando onde faria a maior diferença. E então todos precisam dar uma boa olhada, uma vez iniciada a recuperação, como equilibrar as contas. E, em alguns países, isso significaria reavaliar o sistema tributário.

O que recomendaria para os países que ainda têm espaço fiscal? Devem gastar agora ou esperar a recuperação?

Este é o conselho que temos para os países que têm espaço fiscal: use-o! Mire melhor do que no início da crise, mas use-o.Muito importante para os países continuarem a apoiar as empresas e as pessoas até que haja uma saída duradoura da crise de saúde. E essa saída da crise de saúde vai demorar um pouco porque a vacinação não é café solúvel, não é instantâneo, leva tempo para ser implantada.

Portanto, use o espaço fiscal até sairmos da crise e, quando sairmos da crise, é muito importante que os países usem o impulso público para transformar suas economias em mais competitividade, ou seja, digital, de baixo carbono, resiliste ao clima e com mais igualdade de acesso às oportunidades para todos. Mas não retire o suporte se você tiver capacidade, não retire o suporte até que você esteja do outro lado da crise de saúde.

Em relatório recente o FMI disse que o Brasil deve manter seus programas emergenciais, como a transferência de renda paga populações vulneráveis. Mas o presidente Jair Bolsonaro disse que não prorrogaria os benefícios após dezembro. Em termos numéricos, o que pode acontecer com a economia do Brasil se o governo não estender esses benefícios, e qual seria o impacto sobre a desigualdade no país?

Não estamos fora de perigo ainda. A pandemia não acabou, a crise de saúde não acabou e, por isso, recomendamos aos países que mantenham apoios mais direcionados para as pessoas mais vulneráveis.Temos visto no início da crise um perigo muito significativo de aumento da pobreza para as quatro grandes economias [da região], Argentina, Brasil, México e Colômbia.

O que estava se formando eram 30 milhões de pessoas a mais na pobreza. Isso foi contido devido a esse tipo de política de suporte de emergência.Portanto, a preocupação número um é que a pobreza aumente —vimos o desemprego no Brasil aumentar. Retirar o apoio poderia significar um obstáculo para a recuperação [...] Cortar essa corda de salvamento prematuramente é um perigo para a pobreza e a desigualdade e também para o sucesso na recuperação mais rápida e robusta.

No entanto, o Brasil, como muitos países, tem que lidar com um espaço fiscal mais limitado e a necessidade de garantir a sustentabilidade fiscal devido ao seu alto nível de endividamento. É por isso que é importante que as autoridades se comprometam com o teto de despesas que ancora este caminho para a sustentabilidade e com a implementação de reformas estruturais que garantam a consolidação fiscal no médio prazo. Ao mesmo tempo, as autoridades devem proteger os pobres e evitar um aumento acentuado da desigualdade de renda e da pobreza.

Nossa estimativa é de que um total de 24 milhões de brasileiros poderiam ficar em extrema pobreza sem apoio. Dado o alto nível de incerteza, as autoridades devem continuar a calibrar cuidadosamente sua resposta e se adaptar rapidamente às novas circunstâncias. Se as condições econômicas se deteriorarem repentinamente, as autoridades devem estar preparadas para fornecer apoio adicional.


O governo da Argentina ainda espera fechar o acordo de crédito com o FMI até março do próximo ano. Esse cronograma ainda é razoável?

Estamos engajados de forma construtiva com a Argentina e esse envolvimento intensivo continuará o tempo que for necessário para que a Argentina tenha clareza sobre seus objetivos de médio prazo, que proporcionam âncoras de política monetária e fiscal, além de condições para o crescimento liderado pelo setor privado para a expansão das exportações e atento às pessoas mais vulneráveis. Esse é o nosso objetivo de trabalharmos juntos, para que se alcance esse tipo de clareza de um plano que também tem respaldo político e social.

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