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Cifras & Livros

Livro da turma da Mônica que ensina finanças reforça estereótipos de gênero

Obra é didática na educação financeira, mas trata menino como empreendedor e menina como conservadora ou gastadora

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São Paulo

O livro “Como Cuidar do seu Dinheiro”, fruto de parceria entre o influenciador Thiago Nigro e o cartunista Mauricio de Sousa, é uma boa contribuição para a educação financeira das crianças, mas presta um desserviço ao combate a estereótipos de gênero.

Lançada há pouco pela Harper Kids, a obra começa com uma ideia criativa. A introdução é precedida por uma breve história em quadrinhos na qual Nigro —conhecido pelo canal no YouTube “O Primo Rico”— ganha um personagem desenhado por Mauricio.

O pequeno Thiago pede para brincar com o quarteto principal da Turma da Mônica. Enquanto conversam, a carteira pesada do menino cai acidentalmente do bolso, e a grande quantidade de cédulas impressiona Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali. Thiago explica que não é rico, mas que economiza suas mesadas.

A partir desse gancho, a historinha se desenvolve, e o novo personagem propõe um desafio aos quatro novos amigos: “Vou dar cinco moedas para cada um de vocês! E quero ver quem vai ganhar mais dinheiro a partir dessa quantia”. Mais tarde, se reencontram, e o resultado da brincadeira é apresentado nesta ordem:

Turma da Mônica lançará livro sobre educação financeira, chamado ""Como Cuidar do Seu Dinheiro"
Turma da Mônica lançará livro sobre educação financeira, chamado "Como Cuidar do Seu Dinheiro" - Divulgação

Mônica diz que não pensou em nenhum plano para fazer o dinheiro render, mas viu um cofre de porquinho em casa e guardou todas as moedas. Cascão conta que fez um ótimo investimento. Comprou sucatas, montou brinquedos a partir delas, os vendeu e dobrou os recursos recebidos. Magali narra, aos prantos, sua reação impulsiva: gastou tudo com comidas, embora saudáveis. Cebolinha —conhecido por seus planos infalíveis contra Mônica que nunca dão certo—, dessa vez, se deu bem. Ele conta que poupou duas moedas, com as demais comprou limões e montou uma barraquinha para vender limonada. Como lucro, voltou a poupar e reinvestir e seguiu assim.

Embora nem todos os seus empreendimentos tenham dado certo, como bom investidor, ele seguiu em frente e, no fim, cumpriu o desafio de fazer o dinheiro render. Como tenho três filhos pequenos —Dante,11, Andrés, 8, e Benjamin, 5—, o pedido da Folha para que eu resenhasse “Como Cuidar do seu Dinheiro” veio acompanhado da ideia de que os dois maiores lessem e palpitassem.

Grandes fãs da Turma da Mônica, Dandan e Andi não só toparam aproposta como quiseram ler o livro inteiro antes de mim. O combinado foi que eles fariam anotações e que, depois que eu lesse a obra, conversaríamos sobre o que cada um de nós achou. Mas resolvi bater um papo com eles sobre a história em quadrinhos inicial antes de seguir em frente na leitura.

Fiquei curiosa para saber o que haviam concluído. Primeiro, conversei com Dante, que estava de folga enquanto os irmãos faziam suas aulas virtuais.Perguntei se ele lembrava o que cada personagem fizera com o dinheiro no desafio da parte inicial. Ele se recordava dos desfechos de Cascão, Cebolinha e Magali.Relembrei-lhe, então, da parte da Mônica. ​

Falamos sobre a importância de poupar e investir e sobre o que ele aprendeu com o livro. E, então, perguntei: “O que você achou das soluções dos personagens no início da história, notou algum padrão nas escolhas deles?”. Sem pestanejar, ele respondeu: “As duas garotas se deram mal, os dois garotos se deram bem”.

Quando Andi ficou livre, repeti a conversa. Ele se lembrava muito bem da solução dada às moedas pelos personagens. Pensou um pouco mais que o irmão maior quando fiz a pergunta sobre as escolhas, perguntou-me o que eu queria dizer por “padrão”. Expliquei: “Algo em comum ou diferente no comportamento dos personagens”.

Ele refletiu e respondeu: “Os meninos venderam coisas, e as meninas não fizeram nada”. Dandan interveio: “Mas, para sermos justos, a Mônica guardou o dinheiro. Isso é bom, né?”. O irmão respondeu: “É, mas não criou nada com ele”.

Os fatores que levam poucas mulheres a buscar áreas como engenharia e economia vêm, em parte, de ideias apresentadas às crianças —às vezes por hábito cultural— desde cedo. As pesquisas que mostram isso indicam que, conforme transitam para faixas etárias maiores, as meninas vão perdendo a confiança na capacidade de ter bom desempenho em matemática, por exemplo. Já os meninos são vistos —e se veem— como arrojados e hábeis com números e desafios.

Por isso, mostrar Cebolinha e Cascão como empreendedores e Mônica e Magali como, respectivamente, uma conservadora pouco criativa e uma consumista impulsiva é um desserviço à tarefa de combater os estereótipos de gênero. Esse escorregão surpreende quem acompanha a trajetória do grupo liderado por Mauricio. Afinal, a própria Mônica, nos quadrinhos tradicionais do cartunista, é uma menina esperta que, há décadas, inspira pequenas garotas e as faz se sentir empoderadas.

Iniciativas mais recentes da Mauricio de Sousa Produções denotam atenção do grupo a temas como diversidade e igualdade. O cartunista criou personagens negros e os alçou a protagonistas de histórias. Recentemente, sua equipe lançou o projeto “#DONASDARUA”, que busca disseminar, a partir de casos reais, a mensagem de que as meninas podem ser o que sonharem. Por mais que tentasse me concentrar na leitura, meu pensamento me levava de volta ao quadrinho inicial.Fiquei imaginando outros desfechos mais equilibrados.

Porque não atribuir a Magali a ideia de comprar as melancias que ama e montar uma barraquinha de sucos? Cebolinha poderia ter desempenhadoo papel do impulsivo que gastou tudo em bugigangas em um de seus planos infalíveis. Apesar desse incômodo persistente, achei que o livro traz conceitos importantes sobre finanças de forma didática.

Em mais de uma passagem, estimula o altruísmo, ao ressaltar que alguém que administra bem o próprio dinheiro pode também ajudar os demais. As anotações de Andi destacaram a importância de pensar bem antes de pedir algo aos pais. “Você pode depois comprar mais barato”, escreveu.

Em conversa comigo, Andi também disse que, “se um adulto gasta todo o seu dinheiro em um carro, sem pensar bem antes, pode depois não conseguir pagar pela conta de luz e pelos alimentos”. Coincidência ou não —acho que não—, ele próprio anda menos impulsivo em relação à sua mesada. Também percebi que Dante tem refletido sobre como o hábito de poupar pode ajudá-lo a conquistar sonhos no futuro. Nesses dias, me perguntou: “Juntar tudo o que ganho vai me ajudar a ir para a faculdade?”.

Com base no que leu, ele recomendou a Andi e Benja que não carregarem todo o dinheiro de seus cofrinhos para “a casa da vovó” (onde devemos passar o Natal) por que podem perder as cédulas e as moedas. Sugeriu “pedirem à mamãe para fazer os gastos no cartão dela e vocês pagam ela depois”.

Dandan ressaltou que teria gostado mais do livro se fosse todo em formato de quadrinhos. Lembrou que gostou de ter lido os gibis sobre educação financeira que Mauricio criou em parceria com o Sicredi (instituição financeira cooperativa) no ano passado.

Os meninos acharam o último capítulo do livro, sobre investimentos em ações, o mais difícil, embora Andi tenha rido muito da ilustração em que o Cebolinha aparece refletindo diante de uma Bolsa: “Selia isso a Bolsa de Valoles?”.

Nesse capítulo, os autores dizem que, embora as meninas de até 15 anos invistam bem menos que os meninos de mesma faixa etária na Bolsa (B3), essa realidade começa a mudar porque “hoje sabemos que tanto meninos quanto meninas podem ser ótimos investidores e empreendedores”. Pena que não tenham se lembrado de ilustrar isso logo na abertura do livro.

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