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Mais uma década perdida

Crescimento de desigualdade e concentração de riqueza alimentou conflitos e geraram onda populista de extrema direita

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Guido Mantega

Foi ministro do Planejamento (2003 a 2004), presidente do BNDES (2005) e ministro da Fazenda (2006 a 2014). É professor da FGV desde 1980.

A crise do coronavírus reflete o triste fim de uma década infame, que começou mal em 2011, sob o impacto da grande crise financeira de 2008. Nesse período, o comércio mundial encolheu e a maioria dos países não cresceu, ou o fez a um ritmo muito lento, o “novo normal”.

No Brasil, caso se confirme a previsão de um PIB negativo de 5% neste ano, a economia do país terá ficado estagnada nesses dez anos, com crescimento anual de no máximo 0,2%. Não se trata só de mais uma década perdida, mas a de pior desempenho desde a que inaugurou o século passado, segundo o IBGE.

O capitalismo mundial vem perdendo dinamismo desde o fim das políticas de bem-estar social, nos anos 70. Desde então, a cada década o investimento no mundo fica mais fraco —no Brasil caiu de 20,5% do PIB em 2014 para 15,4% em 2019.

Redes sociais Caricatura Guido Mantega
Guido Mantega foi ministro do Planejamento de 2003 a 2004, presidente do BNDES em 2005 e ministro da Fazenda de 2006 a 2014 - Ilustração Luciano Veronezi

Depois da crise de 2008, a produtividade dos países avançados e do Brasil cresceu em média de 0,5% a 1% ao ano. Foi a menor alta das últimas cinco décadas. Com a desregulação dos mercados estabeleceu-se o império do capital financeiro.

Os lucros apropriados pelo setor financeiro, que representavam 10% do lucro das corporações em 1950, passaram para mais de 30% em meados da década de 2010. No Brasil os juros e os lucros do setor financeiro continuaram elevados nos anos 2010, conforme pode ser constatado pelos lucros dos grandes bancos.

A outra face dessa moeda é a precarização do trabalho e o aumento da desigualdade e da concentração de renda em escala mundial. Agora, com a Covid-19, o desemprego vai bater recorde na maioria dos países. No Brasil já está em 14%, e tende a aumentar no ano que vem.

De acordo com o IBGE, os 10% mais ricos da população brasileira concentravam 43% da massa de rendimentos em 2018, enquanto os 10% mais pobres ficavam com apenas 0,8%. O aumento da desigualdade da concentração de renda é uma característica marcante da década de 2010, com perda de direitos dos mais pobres e a consequente deterioração da democracia.

Martin Wolf escreveu no Financial Times que a ascensão do capitalismo rentista poderá significar a morte da democracia liberal.

O Brasil começou a década perdida com expansão razoável de 3% ao ano e chegou a 2014 com a economia desacelerada, mas com uma dívida líquida baixa (36,7% do PIB) e com abundantes reservas financeiras (US$ 376 bilhões). No final de 2014 o desemprego era de 4,7%, o menor da séria histórica, assim como a pobreza e a miséria estavam nos mais baixos patamares.

Logo depois da reeleição de Dilma Rousseff o país mergulhou numa forte crise política que deixou o governo acuado. A Operação Lava Jato paralisou a Petrobras e a cadeia produtiva de gás e petróleo, e as grandes construtoras, responsáveis por boa parte do investimento.

Essa crise foi amplificada pelo abandono da estratégia desenvolvimentista praticada até 2014. Com a nomeação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda em 2015 foi inaugurada uma nova fase neoliberal que vigora até hoje.

O crescimento da desigualdade social e da concentração de riqueza alimentou fortes conflitos, que desembocaram em mobilizações sociais e geraram uma onda populista de extrema direita, que fomentou o ódio e a radicalização. Foi assim que surgiram Donald Trump, nos EUA, e Bolsonaro, no Brasil. Grã-Bretanha, Polônia e Hungria são outros exemplos.

O esgarçamento do tecido social e o desespero da população nos EUA foi muito bem retratado por A. Deaton e A. Case no livro “Deaths of Despair” (2019). O livro registra a proliferação de suicídios e mortes por overdose devido ao consumo excessivo de álcool e opioides. No Brasil a situação não é diferente. O país é o quinto em número de pessoas com depressão —cerca de 12 milhões, segundo a Organização Mundial da Saúde.

O cenário não é animador. Mas já apareceu uma luz no fim do túnel: a recusa do eleitor americano em renovar o mandato de Trump, o símbolo do novo autoritarismo. Pode ser o primeiro passo para a queda de outros líderes truculentos e incompetentes.

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Ministros da Fazenda avaliam a economia na década

Este artigo faz parte de uma série que reúne textos de opinião de ex-ministros da Fazenda na década 2011-2020. São eles Guido Mantega (2006-2014), Joaquim Levy (2015), Nelson Barbosa (2015-2016), Henrique Meirelles (2016-2018) e Eduardo Guardia (2018).

Guido Mantega comandou a pasta de 27 de março de 2006 a 31 de dezembro de 2014, nos governo Lula e Dilma Rousseff. Também foi ministro do Planejamento e presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Nascido em Gênova (Itália), em 1949, Mantega é formado em Economia pela FEA-USP (Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo). Antes de assumir cargos no governo federal, foi um dos coordenadores do programa econômico do PT nas eleições presidenciais de 1989 a 2002.

Mantega esteve à frente da pasta durante o “boom das commodities” da primeira década do século 21 e na crise de 2008/2009, período em que o governo Lula iniciaria uma transição na política econômica.

Sairia de cena o tripé câmbio livre, meta de inflação e superávit primário. Entraria a chamada “nova matriz econômica”, que se materializou a partir de 2011, formada por juro baixo, câmbio desvalorizado e aumento do gasto público.

O modelo seria complementado pela expansão dos bancos públicos, por leis de conteúdo local e controle de tarifas públicas.

O “milagre econômico” dos anos Lula perderia força na gestão Dilma, marcada por taxas de crescimento mais baixas, elevação da inflação, déficits fiscais e o início de uma nova recessão em 2014. Guido foi sucedido por Joaquim Levy.

Depois de 20 anos com apenas três ministros no comando da economia (de 1995 a 2014), o país teria quatro ocupantes no cargo nos quatro anos seguintes, período marcado por piora nos indicadores econômicos e crises políticas.

Em 2019, na gestão do presidente Jair Bolsonaro, a Fazenda seria incorporada ao novo Ministério da Economia, comandado pelo ministro Paulo Guedes.

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