Entenda o que é a OMC e por que ela precisa ser reformada

Comércio digital, aumento da participação estatal e guerra entre os EUA e a China são alguns dos desafios para a entidade global

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Bruxelas

Vinte cinco anos depois de sua criação, a OMC (Organização Mundial do Comércio) chegou a uma encruzilhada e precisa passar urgentemente por uma reforma, afirma um leque amplo de analistas envolvidos em comércio internacional.

Todas as três funções da organização —fornecer um fórum de negociação para liberalizar o comércio, resolver disputas entre seus 164 membros e monitorar as políticas comerciais— enfrentam desafios, afirma Marianne Schneider-Petsinger, pesquisadora sênior do Programa dos EUA e das Américas da Chatham House. “Para se revigorar, precisa de reformas nos três pilares.”

Mas há um motivo ainda mais urgente para que as conversas multilaterais sobre comércio voltem a ocorrer, diz Anabel Gonzalez, ex-ministra do Comércio da Costa Rica (2010-2014) e ex-diretora da entidade: a pandemia de Covid-19, que incentivou medidas protecionistas e levou muitas empresas e países a rever sua dependência de fornecedores chineses, interrompendo cadeias de abastecimento cruciais para o comércio mundial.

“Os países precisam entender que o comércio não é causa da crise, mas, sim, solução”, diz Gonzalez, para quem é crucial facilitar o comércio de equipamentos médicos e combater o protecionismo.

Abarcar temas que se impuseram na pauta mundial —economia digital, meio ambiente, mudança climática, direitos trabalhistas e inclusão— é necessário para que a entidade volte a ganhar relevância, diz a canadense Debra Steger, ex-diretora do Conselho de Apelação da OMC.

Antes de tudo, porém, será preciso destravar as engrenagens atuais da entidade, paralisadas por bloqueios dos Estados Unidos durante a gestão Donald Trump. Mas, afinal, para que serve a OMC, por que ela enfrenta problemas e o que precisa mudar?

Como surgiu a OMC?

A organização foi fundada em 1995, como uma ampliação do GATT, um acordo para facilitar o comércio firmado por 23 países após a a Segunda Guerra Mundial.

A OMC manteve os propósitos originais do GATT —reduzir tarifas e outras barreiras não tarifárias ao comércio de mercadorias, combater práticas desleais como o dumping e facilitar o investimento entre países— mas ampliou seu escopo.

Na nova estrutura, incluiu o comércio de serviços e a propriedade intelectual e reformou suas regras em áreas sensíveis, como agricultura e têxteis.

O número de membros também foi ampliado, chegando a 164 membros, que movem 98% do comércio global. Outras 22 economias são candidatas a aderir.

A principal novidade da OMC em sua criação foi um sistema de solução de controvérsias, para resolver discordâncias comerciais entre seus membros. Isso deu previsibilidade e segurança jurídica aos acordos, o que, em tese, favoreceria as negociações.

O que deu errado?

1. A crise da globalização

A OMC foi gestada nos anos 1980 em alinhamento com a globalização e o neoliberalismo semeados por Ronald Reagan, ex-presidente dos EUA (1981-1989), e Margaret Thatcher, ex-premiê britânica (1979-1990).

Quando finalmente veio à luz, porém, o liberalismo econômico já era matizado pelas políticas sociais da Terceira Via defendida pelo americano Bill Clinton (presidente de 1993 a 2001) e o britânico Tony Blair (premiê de 1997 a 2007). A globalização, por seu lado, era bombardeada por ativistas das mais diferentes bandeiras: ecologistas, anarquistas, trabalhadores sindicalizados, estudantes, pacifistas e humanistas.

Reunidos em Seattle, dezenas de milhares de manifestantes tumultuaram e enterraram a chamada Rodada do Milênio, em 1999.

Acordos bilaterais tomaram o lugar das grandes rodadas multilaterais e nenhuma negociação ampla teve sucesso até 2015, quando os membros da OMC concordaram em banir subsídios das exportações agrícolas.

2. A rivalidade sino-americana

O arcabouço da OMC, escrito quando o mundo era dominado pelos Estados Unidos e pelas grandes economias europeias, acabou superado com a emergência da China, diz o analista sênior do PIIE (Instituto Peterson de Economia Internacional), Jeffrey Schott, que acompanha de perto rodadas e negociações comerciais desde os anos 1970.

O sistema da OMC previa concessões a economias desenvolvimento —o que naquele momento incluía Singapura, Coreia do Sul, Índia, África do Sul e Brasil, entre outros. Entre os outros colocou-se também a China, que aderiu à organização em 2001.

Schott aponta que o livro de regras da OMC não previa uma economia gigante com forte intervenção estatal. Quanto mais espaço ganhavam os chineses, mais os EUA criticavam o fato de que ela recebia o mesmo tratamento preferencial de Uganda ou Guatemala, mas continuava a desrespeitando as regras do jogo.

As críticas subiram de tom sob a gestão do presidente Donald Trump, que acusou a OMC de proteger a China e prejudicar sistematicamente os EUA nas soluções de controvérsias. O governo americano bloqueou a indicação de juízes para o órgão de apelação no final de 2019, paralisando também esse pilar.

Para Schneider-Petsinger, para além das medidas extremas de Trump, há questões sistêmicas de longa data que já vinham sendo expostas por governos americanos anteriores e são compartilhadas por muitos outros membros da OMC.

3. Crise de liderança

Na avaliação de Schott, a OMC mergulhou numa crise de liderança nos últimos anos: “EUA, China, UE e Japão, que juntos respondem por quase metade do comércio mundial de mercadorias e 54% das exportações mundiais de serviços, deixaram de se engajar. As negociações só voltarão a ter sucesso se eles trabalharem juntos”.

A maior área de desacordo entre os fundadores da entidade é o órgão de apelação. “Se os EUA e a UE não podem trabalhar juntos bilateralmente, a reforma da OMC é improvável”, afirma Schneider-Petsinger. Além disso, toda conversa precisa incluir a China, maior nação comercial do mundo. “Ou seja, a cooperação transatlântica é necessária, mas não suficiente”, argumenta a analista.

Em julho, ao ser apresentada como candidata para dirigir a entidade, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala defendeu tese semelhante: “Os problemas atuais da OMC não são apenas de natureza técnica. Se fossem, teriam sido resolvidos há muito tempo, dado a expertise de seus membros e seu secretariado”.

A saída de Trump muda alguma coisa?

O presidente eleito, Joe Biden, defende em seus discursos o multilateralismo, mas analistas ressalvam que no dicionário americano a palavra tem um significado seletivo: serve enquanto atende os interesses do país.

Ex-negociadores de comércio próximos ao governo americano dizem que o embate com a China não vai desaparecer, porque a convicção de que o governo chinês se escora no multilateralismo para manter políticas de subsídio estatal também é forte entre diplomatas do entorno de Biden.

Segundo Anabel Gonzalez, que também é analista sênior do PIIE, o presidente eleito no mínimo dará espaço para que a organização enfrente os desafios da pandemia e da crise econômica que ela provoca —o democrata elegeu o combate à Covid-19 como prioridade.

Para Steger, qualquer reforma trará desafios —“países poderosos terão visões muito diferentes sobre o que precisa mudar”—, mas ao menos as mudanças serão incentivadas por Biden, que vê a OMC como parte fundamental da política econômica.

Que reformas são necessárias?

Para começar, será preciso entrar em acordo sobre que tipo de reforma haverá, diz o diretor-geral-adjunto Alan Wolff. “O que é necessário não é começar de novo, mas melhorar o que temos. Não há razão para favorecer a queima do que existe na esperança de que algo melhor emergirá das cinzas como uma fênix”, afirma o americano.

E, como as decisões da OMC são baseadas no consenso, as chances de uma revisão fundamental são mínimas se for necessária a aprovação de todos, afirma Schneider-Petsinger: “Portanto, os membros devem comçar por revisar alguns dos princípios e sistema de tomada de decisão da organização”.

Wolff concorda. Entre os exemplos concretos de mudanças necessárias ele cita um acordo sobre quando e onde a unanimidade é apropriada e onde não é. “Em outras palavras, um entendimento de que o consenso não é unanimidade. Isso é necessário para que a organização funcione”, disse ele em setembro na sessão de abertura da Semana do Comércio de Genebra.

Se chegarem a um acordo sobre a forma de chegar a acordos, estes são alguns pontos que precisam de reforma, segundo especialistas na área:

1. Mundo digital

Uma das mais urgentes é um acordo amplo sobre comércio digital, já que a pandemia de Covid-19 acelerou a digitalização da economia, afirma Gonzalez. As regras da OMC foram escritas antes que a tecnologia mudasse radicalmente a forma de financiar, produzir, comercializar e transportar produtos e serviços no mundo.

Em 2019, um grupo de membros da OMC - que incluía a China - endossou uma declaração conjunta sobre o assunto em Davos, prometendo um resultado baseado “nos acordos e estruturas existentes da OMC com a participação do maior número possível de membros”. O documento também se referia a pequenas e médias empresas e países não desenvolvidos, mas era “escasso em detalhes substantivos ou cronogramas”, afirmou na época Sofia Baliño, do IISD (Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável)

Especialistas como Simon Lester, que trabalhou no secretariado do órgão de apelação da OMC, são céticos sobre a viabilidade de um regime internacional de comércio eletrônico. “Os governos que se engajam em práticas específicas não vão querer assinar regras que proíbem essas práticas”, escreveu no blog International Economic Law and Policy.

2. Subsídios e participações estatais

Outro tema potencializado pelo coronavírus são os programas dos governos criados para enfrentar a pandemia: pode ser necessário disciplinar subsídios dados para indústria e agricultura, que podem desequilibrar a concorrência e afetar o comércio.

Além disso, há uma ressurgência de enormes empresas com participação estatal, e não apenas na China, afirma Thomas Duesterberg, do Insituto Hudson. “Em 2013, 81% das receitas das 10 maiores empresas da Rússia vieram de estatais. Os números para o Brasil foram 50%, para os Emirados Árabes Unidos, 88%, para a Índia, 59%, e para a França, 17%”, relata ele.

A crise do coronavírus tende a aumentar essa tendência, como aconteceu com socorros a companhias aéreas em vários países.

A China, onde 8 entre as 10 maiores empresas eram estatais em 2017, é umproblema também porque “é difícil diferenciar as estatais das empresas privadas orientadas para o mercado, por causa das redes opacas de propriedade e do uso criativo de subsídios e restrições de mercado”, afirma o especialista.

As regras da OMC não alcançam a maioria das práticas mercantilistas e não mercantis das estatais e precisam urgentemente de atualização, diz ele.

3. A questão ambiental

É preciso trabalhar no desenvolvimento de novos direitos e obrigações cobrindo a interseção das políticas comerciais e climáticas, afirma o analista do PIIE Jeffrey Schott.

A pressão para que regras comerciais prevejam a possibilidade de punir países que degradam o ambiente para viabilizar suas exportações é crescente, como mostram os protestos recentes na União Europeia contra o acordo com o Mercosul.

4. Tratamento diferenciado

Diplomatas também apontam como crucial a discussão sobre a contribuição das maiores economias emergentes —o que inclui China, Índia, Brasil e África do Sul— para o sistema comercial. O sistema atual é baseado na autodeclaração, critério que países desenvolvidos consideram injusto.

Na gestão Bolsonaro, o Brasil anunciou que abriria mão de seu tratamento preferencial, atendendo a pressões dos Estados Unidos.

“A reforma será impossível sem abordar uma definição consensual do que constitui um país desenvolvido ou em desenvolvimento”, diz Schneider-Petsinger.

O tema, porém, é sensível no que se refere aos subsídios agrícolas, pois os indianos e chineses enfrentam enormes problemas de pobreza e de fome.

5. Reformas processuais

Segundo Schott, uma revitalização da OMC nos próximos cinco anos depende da reconstituição do Órgão de Apelação com novas regras que garantam decisões objetivas e oportunas.

Duesterberg afirma que é preciso atender às queixas americanas de que o sistema de solução de controvérsias “inventa” regras, sem passar pelos membros da OMC.

Se muitos concordam que é preciso aparar as arestas do sistema de controvérsias, não tem sido fácil encontrar soluções que agradem a todos.

Em conversas trilaterais, Japão, EUA e UE vêm conversando há dois anos sobre o assunto, sem grandes avanços.

Entre as detalhadas propostas que Duesterberg descreve está encaminhar os assuntos para os comitês de membros sempre que houver ambiguidade ou incerteza jurídica.

O fundamental, defendeu Okonjo-Iweala em artigo recente, é deixar de tratar o comércio como um jogo de soma zero. Direitos e obrigações podem ser equilibrados com a evolução das regras comerciais, sem fazer do comércio "um bicho-papão culpado pelos problemas econômicos que alguns países enfrentam", afirma a nigeriana.

"Uma OMC moribunda não atende aos interesses de nenhum país."

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