Ponte inacabada inaugurada por Bolsonaro gera insegurança em comunidades

Moradores relatam trânsito intenso em frente às casas; 600 famílias aguardam reassentamento para continuidade da obra

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Porto Alegre

Da janela da casa de Ilza Cristina Vargas dos Santos, 39, é possível ver uma ponte inacabada que avança sobre duas vilas de Porto Alegre (RS), Areia e Tio Zeca.

“Por causa da construção, o trânsito foi direcionado para frente da minha casa. Em um domingo, um motorista invadiu. Perdi minha máquina de lavar e as coisas de dentro de casa, mas todos ficaram vivos. Agora, quando estou trabalhando, só penso nos meus filhos que estão lá dentro dormindo. E se um carro entra de novo e mata eles?”, diz Ilza.

Desde 2011 ela mora na Vila Areia. Sua família é uma das 600 que enfrentam problemas como moradias precárias e trânsito intenso. O congestionamento coloca em risco os moradores que precisam transitar onde não há calçada e preocupa mães e pais cujos filhos brincam em frente às residências.

Imagem da ponte inacabada e de moradores.
Nubia Vargas, com a filha no colo, é moradora da comunidade da Vila Areia, umas das áreas que serão desocupadas para continuação das obras da nova ponte sobre o Rio Guaíba, na região de Farrapos, em Porto Alegre. Indefinição sobre reassentamento ou indenizações tem gerado insegurança nos moradores. A ponte foi inaugurada por Bolsonaro em dezembro, mesmo inacabada - André Feltes/Folhapress

As 600 famílias aguardam a remoção para casas custeadas pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) para a construção da nova ponte do Guaíba. A ponte une a capital gaúcha à metade sul do estado, passando sobre o rio Jacuí nos canais de navegação do lago Guaíba.

Cerca de 1,5 mil famílias, que moravam na Ilha Grande dos Marinheiros, já foram removidas por causa da obra.

A obra foi iniciada em 2014, na gestão de Dilma Rousseff (PT), e deveria ser entregue em 2017, na gestão do presidente Michel Temer (MDB). Sem estar finalizada, foi inaugurada por Jair Bolsonaro (sem partido), em dezembro. Já foram gastos R$ 749 milhões —o total é estimado em R$ 820 milhões.

A ponte tem 2,9 km de extensão sobre o rio Guaíba. O restante da construção, de um total de 13,6 km, é distribuído entre as alças de acesso e os ramos de intersecção, que não estão prontos.

Esta é a segunda ponte sobre o rio Guaíba. A primeira, em funcionamento desde 1957, seguirá ativa, segundo o DNIT. Ela funciona com um sistema de içamento do vão móvel para passagem de navios de grande porte. Com o trânsito sobre a ponte interrompido quando o vão é erguido, congestionamentos são comuns.

Por isso, a nova ponte é uma demanda antiga para o desenvolvimento econômico e diminuição de custos de logística. Sem os congestionamentos, o transporte de cargas em direção ao Porto de Rio Grande ou saídos do porto serão facilitados.

“A ponte, aquele monstro, está sendo construída em cima da favela. É uma modernidade, mas que nos joga para qualquer canto como se fôssemos simplesmente nada. É complicado morar ali. Mas por mais simples que sejam nossos cantinhos, são os nossos cantinhos. Quem está ali já está, automaticamente, em uma situação ruim, falta regularizar os serviços públicos. Aí vem esse monstro e te toca para um canto. Gera incerteza, é muito complicado”, diz Nubia Luisa Vargas dos Santos, 32, recicladora.

Ilza, que enxerga a construção da janela, é mãe de quatro filhos, com 13, 17, 20 e 21 anos. Quando a obra começou, o mais novo tinha 7 anos. “Pagava para ficarem cuidando deles, sempre trancando em casa por causa dos carros”, relembra a recicladora.

Ela será contemplada com uma casa de até R$ 150 mil, não necessariamente no mesmo bairro e na mesma cidade. A aquisição depende da liberação da verba do DNIT, ainda sem previsão.

Só com a remoção das famílias, a obra poderá prosseguir, segundo o procurador federal Enrico Rodrigues.

“Há uma vinculação entre reassentamento e construção. Assim, é preciso viabilizar as novas moradias para poder iniciar a construção da última alça”, diz Rodrigues. O condicionamento ocorreu após ação do MPF (Ministério Pública Federal). Assim, fica garantido que, para terminar a ponte, a questão habitacional precisa estar solucionada, diz.

O MPF organizou uma série de reuniões com moradores. Este tipo de reunião, porém, foi suspensa em razão da pandemia de coronavírus. Agora, os encontros devem ser virtuais.

Moradores reclamam, porém, que os cadastros para indenização estão desatualizados. “Eles não conseguiram acompanhar o crescimento da comunidade. Teria que voltar periodicamente. Tem famílias cadastradas lá atrás que os filhos construíram no mesmo terreno para suas próprias famílias. O acompanhamento desse desenvolvimento geográfico não foi pensado por eles”, diz Núbia.

“Quando chove, por causa da obra, acumula água nas casas. Tem rato, tem fezes humanas no esgoto, tem de tudo. Não tem mais imóvel em volta [no valor a ser pago pelo DNIT]. A gente tem medo de morar em um lugar onde não quer”, diz Araci Moraes da Rosa, 57, moradora da Vila Tio Zeca.

Segundo o MPF, para os 1.500 moradores já reassentados, o Dnit fez a chamada “compra assistida”, que deve ser repetida com as 600 famílias restantes. Segundo o procurador federal, as famílias escolhem os imóveis dentro do valor estipulado. Não há previsão para liberação dos valores.

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