Áreas ocupadas por tráfico e milícia são desafios para concessão da Cedae

Considerado o maior leilão de infraestrutura do país, projeto prevê R$ 31 bilhões em investimentos

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Rio de Janeiro

Considerado pelo mercado o maior projeto de infraestrutura do país, a concessão de serviços de água e esgoto do Rio de Janeiro tem números superlativos: outorga mínima de R$ 10,6 bilhões e cerca de R$ 30 bilhões em investimentos para atender 13 milhões de pessoas.

Mas os desafios dos novos concessionários são inversamente proporcionais. Terão que enfrentar, ao menos nos primeiros anos, um cenário de insegurança hídrica, com elevados índices de inadimplência e perdas e, além de tudo, em regiões que vivem sob o domínio de grupos armados.

O leilão está previsto para 30 de abril. Até agora —o edital foi publicado em dezembro—, 12 empresas manifestaram interesse pela disputa, que movimenta também ecritórios de advocacia e fornecedores de equipamentos.

A concessão foi dividida em quatro blocos, cada um com uma região da capital fluminense e outras cidades da região metropolitana e do interior. O modelo foi definido sob o conceito de "filé e osso", para que cada concessionário fique, ao mesmo tempo, com uma área de grande densidade populacional e outras que demandarão maiores aportes, mas têm receita menor.

Estudo da Abcon/Sindcon (Associação Brasileira e Sindicato Nacional das Concessionárias de Serviços de Água e Esgoto), em parceria com a KPMG, calcula que os investimentos previstos no edital vão gerar um impacto econômico de R$ 47 bilhões, com efeitos principalmente na indústria, e a geração direta e indireta de 402 mil empregos.

"Além dos ganhos demonstrados nesse documento, uma série de externalidades positivas na saúde, bem estar e meio ambiente complementam o leque benefícios de se enfrentar o déficit no saneamento", diz o estudo, lembrando ainda do potencial para alavancar a economia.

Embora esperem interesse e atração de grandes grupos internacionais, especialistas veem riscos para os eventuais concessionários, tanto do ponto de vista regulatório quanto na capacidade de atendimento ou cumprimento das metas de universalização.

Um deles é o convívio com áreas dominadas por fações armadas. Levantamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (Universidade Federal Fluminense) aponta que 57,4% da população da região metropolitana do Rio vive em territórios sob controle de alguma organização criminosa.

Com maior capilaridade, as milícias ocupam áreas onde vivem 29,2% da população da região metropolitana. Esse domínio já é hoje um obstáculo para prestadoras de serviços públicos no estado, como o fornecimento de luz ou de gás natural.

No setor de energia, o Rio está entre os estados brasileiros com maiores perdas não técnicas do país. Em 2019, 45% da eletricidade injetada na rede de distribuição do estado deixou de ser faturada pelas distribuidoras locais, tendo se perdido principalmente em gatos na rede elétrica.

Há ainda recorrentes problemas com furto de equipamentos, como cabos de telefonia. Na própria área da Cedae, era comum o furto de bombas, conta Wagner Victer, que presidiu a companhia entre 2007 e 2014. “Quando assumi, cerca de 200 das 1000 elevatórias da empresa estavam paradas por furto de cabos ou de bombas”, recorda.

​Para especialistas, a questão pode impactar no preço final das concessões, ao reduzir a previsibilidade sobre o retorno e a possibilidade de cumprimento das metas, tanto de universalização, quanto de redução de perdas.

"Como fazer para gerar toda a infraestrutura necessária dentro de uma comunidade, área ocupada, com adensamento razoavelmente desordenado? É um desafio de segurança e da própria ntureza de toda cidade grande", diz o sócio da área de infraestrutura do MNA Advogados, Fábio Izidoro.

"Essa é uma dor de cabeça que vai acompanhar não só a licitação em si como também a execução dos projetos", concorda Maurício Moreira Menezes, do Moreira Menezes, Martins Advogados. "Todo o mundo sabe que tem esse problema e a quantificação e precificação dele é um desafio."

Victer diz que conseguiu minimizar o problema estreitando contato com lideranças comunitárias, mas avalia que o setor privado terá mais dificuldade para gerenciar as obras nessas regiões.

Além da dificuldade de acesso a algumas áreas, os novos concessionários terão que lidar com elevados índices de inadimplência e perdas na rede de distribuição. Em nenhum dos blocos em oferta, o índice de inadimplência fica abaixo de 25%.

Em Seropédica, município da região metropolitana com amplo controle territorial de milícias, a inadimplência chega a 81%, de acordo com dados do BNDES. Em Belford Roxo, a cerca de 40 quilômetros dali, é de 73%.

O Rio é também um dos estados com maior perda de água na rede de distribuição. Segundo o Snis (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), a Cedae perde 729 litros por ligação por dia, mais que o dobro da média nacional desse indicador.

Responsável pela modelagem das concessões, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) aposta na redução da inadimplência e das perdas como um dos incentivos ao investimento para elevar a produtividade e a rentabilidade das concessões.

O processo de concessão mantém a produção de água sob o controle da estrutura da Cedae que permanecerá estatal. Essa empresa será responsável por fazer os investimentos para ampliar a capacidade hídrica do estado. São R$ 2,9 bilhões em despoluição e em uma nova estação de tratamento na bacia do rio Guandu.

A execução do projeto é vista como outro risco para os futuros concessionários. Sem ele, a região metropolitana do Rio permanecerá enfrentando um cenário de fragilidade hídrica que levou a Cedae a distribuir nos dois últimos verões água com gosto de terra, problema provocado pela proliferação de geosmina em meio à água poluída da bacia.

"Tem hoje problema de abastecimento de água para todo o estado", diz Alberto Sogayar, sócio da área de infraestrutura do LO Baptista Advogados. Para ele, os contratos de compra de água deverão tratar de eventuais contingências e de socorro em caso de eventuais insuficiências hídricas em algum dos blocos.

O governo do Rio promete garantir acesso dos concessionários a qualquer região do estado e fala em um esforço conjunto para definir um plano de ação para a ampliação da infraestrutura. "Não há área no estado em que o Estado não possa atuar", diz o chefe da Casa Civil do governo estadual, Nicola Miccione.

"Vamos construir juntos isso", completou, afirmando que a polícia já vem atuando em conjunto com as concessionárias em caso de dificuldades, citando episódio recente em que a distribuidora de gás canalizado Naturgy foi impedida de entrar no condomínio dominado pela milícia.

Miccione afirma que o governador em exercício Cláudio Castro (PSC) trabalha também num plano de modernização da Cedae remanescente, para garantir que os compromissos de investimento na captação de água sejam cumpridos.

Segundo ele, já há grande interesse pelo leilão. Em evento virtual há duas semanas, disse que mais de mil visitas técnicas com interessados já haviam sido realizadas. Outras mil teriam sido agendadas.

Além da receita com a outorga, o governo espera que a concessão ajude o estado a se recuperar da crise. "O projeto tem um efeito multiplicador é muito grande, gera uma espiral positiva em várias cadeias produtivas", afirma.

No longo prazo, acrescenta, terá efeitos também sobre a saúde, educação e qualificação profissional, já que investimentos em saneamento costumam reduzir a proliferação de doenças e melhorar a frequência escolar dos alunos.

Victer vê problemas no modelo e diz acreditar que será difícil garantir todos os aportes pedidos pelo governo sem aumento da tarifa para o consumidor, como promete o edital. "Ao deixar de ser estatal, a empresa perde imunidade tributária. Tem ainda que pagar outorga e investir R$ 30 bilhões. Isso não para de pé."

Alheios à discussão, fornecedores começam a se movimentar para atender à demanda, não só da Cedae, mas também de outras concessões de saneamento já licitadas ou previstas pelo governo. A fabricante de medidores de água Acell, por exemplo, pretende expandir a capacidade de produção em 25%.

A empresa já investiu cerca de US$ 10 milhões (R$ 52 milhões) em maquinário e contratou mais 85 pessoas para trabalhar em sua fábrica em Americana (SP), que hoje tem cerca de 600 empregados.

"Agora vamos fazer outra rodada [de investimentos], que pode resultar na abertura de uma nova unidade fabril", diz o diretor-executivo da Acell, Henrique Costa. Ele diz acreditar que que o mercado de medidores pode saltar das atuais 6 milhões de unidades por ano para perto de 10 milhões nos próximos anos.

Para Costa, o processo de universalização do saneamento vai movimentar diversos fornecedores e prestadores de serviços. "São medidores, tubulação, bombas, motores, investimentos em novas plantas de tratamento de água e de esgoto... E, se vai trocar tubulação, precisa de asfalto. Se tem estações de tratamento, precisa de produtos químicos", enumera.

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