Cachaça mais antiga do Brasil, Ypióca se renova para acompanhar o gosto do público

Empresa fundada há 175 anos hoje faz parte do portifólio do grupo Diageo, que leva a aguardente para o mundo

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Claudia Rolli
São Paulo

Do trabalho escravo usado no alambique trazido de Portugal para a fazenda Ypióca (CE) em 1846 até a licença paternidade de 60 dias concedida hoje aos funcionários, 175 anos se passaram e marcaram a produção de um produto que faz parte da história do país: a cachaça.

Mais antiga marca de aguardente em funcionamento no país, Ypióca esteve por cinco gerações nas mãos da família Telles, dona de um grupo que fatura R$ 500 milhões com sete empresas que surgiram ao redor da cana-de-açúcar.

A Ypióca foi comprada em 2012 por R$ 930 milhões pela multinacional britânica Diageo, maior fabricante de destilados do mundo e dona de marcas tão tradicionais como a de cachaça, caso da Johnnie Walker (200 anos), da Smirnoff (157) e da Tanqueray (191).

“A marca segue respeitando sua tradição e em sintonia com as exigências da sociedade. Está entre as melhores bebidas destiladas do mundo e temos desenvolvido produtos que atendem às novas tendências de consumo”, diz Gregorio Gutiérrez, presidente da Diageo para a região PUB (Paraguai, Uruguai e Brasil).

Por 166 anos, pais, filhos e netos se sucederam no comando de Ypióca desde que o português Dario Telles de Menezes começou a destilar e a vender a bebida em Maranguape (CE). Os escravos foram substituídos por trabalhadores livres em 1885, três anos antes da abolição.

Para ser reconhecida com uma marca própria, a cachaça dos Telles deixou de ser vendida de porta a porta em “canada” (medida de cinco litros) para a garrafa. Ganhou cara.

Até hoje a Ypióca carrega a logomarca desenhada à mão, por volta de 1911, pela nora do fundador. O nome significa “terra roxa” em tupi-guarani, em referência ao solo propício para cultivar a cana-de-açúcar, segundo historiadores.

Nos anos 1920, Ypióca foi chamada de “delicioso whisky nacional” após Paulo Campos Telles, neto do fundador, criar a primeira cachaça envelhecida em tonéis de bálsamo, um marco em sua história.

O processo é feito até hoje com diversos tipos de madeiras, como umburana e carvalho, para dar cor e sabor ao produto. Ao menos 36 tipos diferentes são usados entre as 4.000 marcas de cachaça feitas por 1.080 produtores no país.

A bebida tornou-se símbolo nacional e ganhou destaque no país na Semana de Arte Moderna de 1922. “A cachaça virou um marco da brasilidade. Foi assim que chegou aos consumidores de classes mais altas, acostumados a beber uísque importado”, diz Carolina de Souza, head de Cachaça da Diageo PUB.
Em 1924 a Ypióca recebeu a embalagem pela qual é reconhecida até hoje dentro e fora do país: a palha de carnaúba trançada à mão.

A tradição foi mantida e virou parte do projeto social Tecendo o Futuro, que gera renda a 2.500 mulheres de associações de artesãs e se expandiu em 2019 para um grupo de presidiárias de Aquiraz (CE).

Com o crescimento da produção, Ypióca foi a primeira empresa do país a abrir mercado para a cachaça —a bebida “made in Brazil” chegou à Alemanha em 1968. Hoje é exportada para 15 países. A exportação é parte menor nos negócios, mas os números são confidenciais. No setor, 1,4% do volume produzido foi enviado para 70 países em 2020.

Dentro do país, Ypióca se destaca. É a terceira mais vendida (em valor) e líder no Nordeste, segundo dados da Nielsen (vendas sem bares e restaurantes) em 2020.

“Ypióca sempre aliou volumes de produção à qualidade e preço acima das concorrentes industriais. Com isso, se aproximou mais das cachaças premium de alambique do que das populares”, diz Mauricio Lima, consultor e professor sobre a bebida em universidades e escolas dentro e fora do país.

Sete a cada dez destilados vendidos no país são cachaças. Mas ainda há espaço para crescer: o brasileiro consome, em média, dois litros/ano de aguardente. Na cerveja, essa média é de 49 litros.

A marca atua em um mercado que movimentou R$ 11,5 bilhões em 2020, ou 6,3% da venda de todas as bebidas alcoólicas do país, segundo a Euromonitor. Ypióca tem uma fatia de 8,3% nas vendas (em valor) do varejo ao consumidor final. A sua frente estão 51, da Cia Müller de Bebidas (15,5%), Pitú (9,5%) e Tatuzinho (8,9%).

Apesar da pandemia, as vendas cresceram 33% no país entre julho e dezembro, impulsionadas por gin e scotch, segundo a Diageo. A empresa fez ações para estimular o consumo, como um fundo global de US$ 100 milhões de apoio a bares e restaurantes. Por aqui, 1.800 locais receberam R$ 15 milhões em itens de higiene e distanciamento social.

Com o engenheiro agrônomo Everardo Telles, da quarta geração, Ypióca se consolidou e permitiu a expansão para outras áreas. Por 51 anos, ele comandou do plantio à fabricação de embalagens e distribuição. Hoje ele preside o conselho de administração do Grupo Telles.

Pilotando um helicóptero, Everardo visitava cada canavial e unidade para fiscalizar a Ypióca de perto. Ainda mantém o costume no grupo. “O olho do dono é que engorda o cavalo”, afirma.

Ele guarda uma história em especial: um incêndio destruiu a fábrica em 1990. “Vi as labaredas a oito quilômetros de distância. Quando cheguei, gritei para os bombeiros salvarem as máquinas. O estoque cheio se foi.”

Uma linha de produção foi improvisada. Fornecedores e clientes ajudaram a Ypióca a se reerguer em três meses.

Aos 77, Everardo afirma que saiu do negócio por oportunidade e não pretende voltar à cachaça (o acordo para não competir acabou em 2017). Nos bastidores, se diz que, além do valor de quase R$ 1 bilhão pago pela Diageo, a questão da sucessão fami-liar pesou na decisão.

Até 2015, a Diageo dependia do Grupo Telles para fornecer parte do produto que vinha de outras usinas, além de embalagens (papelão e PET). Hoje a multinacional compra uma parte menor de PETs dos Telles e afirma ter fornecedores estratégicos.

“Dr. Everardo é um empreendedor com visão de futuro. Criou negócios paralelos, lucrou com a venda e também como fornecedor nos pós-venda”, diz Nelson Duarte, gerente de desenvolvimento de líquidos da Diageo de 2014 a 2020.

Duarte ajudou a criar a Ypióca 5 Chaves, blend de cachaças raras envelhecidas, premiada em concursos internacionais e vendida por R$ 100. “A Diageo avançou em inovação, lançamento de produtos, tecnologias sustentáveis e projetos ambientais e sociais”, afirma o executivo.

Entre as inovações, está o uso de baterias de íon-lítio (energia limpa) para movimentar empilhadeiras e evitar a emissão de CO2. A tecnologia reduz custos em 13% e aumenta a produtividade em 18%, diz a empresa, premiada também pelo reúso e economia de água na produção.

“A Diageo trouxe investimentos e agregou valor a uma indústria tradicional, de uma família empreendedora”, diz Ricardo Cavalcante, presidente da Fiec, federação das indústrias. “Gera renda às famílias das internas, ajuda mulheres a empreender no artesanato, treina jovens de baixa renda como bartenders, além de atender o consumidor com diferentes marcas.”

A multinacional está investindo R$ 100 milhões em uma nova fábrica em construção desde 2019 na cidade de Itaitinga (a 30 km de Fortaleza), que inclui um centro para distribuir produtos no Nordeste. O complexo deve melhorar a logística, ampliar a operação e introduzir novos produtos. O envase do uísque Black & White deve ser feito aí.

“A entrada da multinacional abre mais canais de distribuição e mostra ao mundo uma nova categoria de bebidas, como ocorreu com a tequila”, afirma Carlos Lima, diretor-executivo do Ibrac,
instituto do setor.

Hoje, quatro países reconhecem a cachaça como uma bebida de produção exclusivamente brasileira: Colômbia, EUA, México e Chile.

Contudo muita coisa mudou desde que o ator John Travolta tomou uma Ypióca num bar carioca e jogou bola na praia, convidando todos a “brasilizar”, em uma campanha de TV em 2013.

Ypióca virou ingrediente da alta coquetelaria, se aproximou dos mais jovens em versões saborizadas e voltou a valorizar suas origens.

O ator e comediante cearense Edmilson Filho, conhecido por filmes como Cine Holliúdy, “ganhou” um cargo que vai além de garoto-propaganda. Ele virou o “creative director of fuleragem” para ajudar a criar ações da marca.


Raio-x

Atual líder da empresa
Gregorio Gutiérrez é o presidente da Diageo para a região PUB (Paraguai, Uruguai e Brasil)

Contexto histórico
A expansão do café impulsionava a exportação em 1846. O ano foi marcado ainda pelo início da Guerra do Paraguai, o conflito armado mais violento e longo do país, que terminou em 1870

Visão de negócio
Dario Telles de Menezes trouxe de Portugal um alambique de cerâmica, instalado na fazenda Ypióca, em Maranguape (CE). Sua família comandou a empresa com a visão de fazer um produto de qualidade e inovador

Receita de longevidade
Ter qualidade e inovar na produção, como ao lançar a bebida envelhecida ainda nos anos 1920, além de atender mudanças de consumo


Um dos pilares da longevidade de um negócio é a qualidade de suas esquipes, que vão passando o bastão geração após geração; as reportagens deste caderno são de autoria de jornalistas que simbolizam esse tipo de legado.

Claudia Rolli

É jornalista especializada em economia e negócios. Foi repórter de economia da Folha de 2001 a 2016 e trabalhou em outros jornais do grupo: Notícias Populares (1994-1997) e Agora S.Paulo (2000-2001). Atuou em projetos jornalísticos nas áreas de tecnologia, inovação e finanças pessoais no setor financeiro e hoje é colaboradora em projetos especiais, como esse, além de outros jornais, revistas (Forbes, Pequenas Empresas & Grandes Negócios) e sites de notícias

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