Empresas longevas se preocupam com memória, diz pesquisador dos primeiros capitalistas brasileiros

Jacques Marcovitch aponta os fatores decisivos que explicam a sobrevivência e a prosperidade das companhias

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Nelson Blecher
São Paulo

Detetive da alma empresarial, o professor Jacques Marcovitch, ex-reitor da USP (Universidade de São Paulo), está à frente do programa Pioneiros & Empreendedores, que resgata a trajetória de empresários que semearam as bases do capitalismo corporativo no Brasil.

Da galeria de 24 perfis, emergem fundadores de companhias que resistiram ao tempo, às ciclotimias da economia e se tornaram centenárias. Entre elas estão a Suzano, fabricante de papel e celulose, a siderúrgica Gerdau e a Cedro Têxtil.

Nesta entrevista, Marcovitch aponta fatores capazes de elucidar a questão da longevidade de empresas de origem familiar num país em que, como mostram as pesquisas, a maioria não ultrapassa a segunda geração.

Quais as origens do mundo corporativo no Brasil?  
Temos uma história comercial e industrial que praticamente começa com o Brasil monárquico (1808-1889). É lógico que podemos voltar aos engenhos e entender que houve primeiro uma cultura da cana-de-açúcar.

O conceito de empresa propriamente surge neste período, talvez com a visão do Visconde de Mauá, a própria criação da Casa da Moeda e do Banco do Brasil. Vamos encontrar as primeiras iniciativas nesta época, com as famílias Prado e Mascarenhas.

Luiz de Queiroz remonta a este período com a ideia da primeira indústria têxtil, para produzir sacos do comércio dos produtos que ele cultivava, a primeira usina de energia elétrica e, em seguida, a concepção da escola de agronomia que leva seu nome.

Data também deste período a Casas Pernambucanas, com a vinda da família Lundgren da Suécia. Em termos comparativos, nossa história empresarial é muito mais curta do que a de países como o Japão, onde se encontra uma diversidade de empresas multicentenárias.

Professor emérito da FEA e ex-reitor da USP, Jacques Marcovitch - Diego Padgurschi - 23.ago.2017/Folhapress

Que fatores explicam a sobrevivência de empresas brasileiras ao longo das gerações?
A primeira condição para que uma empresa se torne longeva diz respeito aos valores e princípios embutidos na sua cultura. Valores de que tipo? Qual é sua identidade? Qual sua visão de futuro?

A partir daí há outras dimensões, como a robustez financeira e o foco em resultado, além de ficar claro quem decide. Isso não significa uma postura autoritária —os conselhos que acompanham o líder são sensíveis em relação aos outros—, mas têm a responsabilidade de tomar a decisão final. O interesse da empresa se sobrepõe ao individual.

Também nas empresas longevas há uma preocupação com a memória, ou seja, com a história da empresa. De onde vem, que adversidades enfrentou e como superou as rupturas. Vamos ver hoje, com a crise provocada pela pandemia, como se sairão as empresas preocupadas com sua memória em relação às demais.

Existe ainda nessas empresas uma clara expectativa em relação à descendência, o que significa formar quadros que no futuro irão assumir responsabilidades decisórias.

A primeira geração aprendeu exclusivamente por meio da experiência. Foi assim que forjaram sua identidade de empreendedores pioneiros. Mas a segunda, terceira e quarta gerações não atravessaram as dificuldades e desafios da pioneira. Daí a preocupação de educar as gerações, ensinando a pensar e revivendo essas experiências.

E, finalmente, essas empresas têm a capacidade de conciliar o curto, médio e longo prazos. Quer dizer, mantêm o farol alto e o baixo acesos ao mesmo tempo. É o que foi lembrado pelo Nobel Daniel Kahnemann [teórico da economia comportamental], que é a ideia do tempo 1 e do tempo 2. Como é possível conciliá-los ao mesmo tempo?

O sr. frequentemente ressalta o papel da resiliência como fator de sobrevivência empresarial. Do que se trata?
Resiliência é a capacidade de superar rupturas, que são momentos de descontinuidade. A primeira característica é saber se a pessoa faz da adversidade um ativo. Ela percebe que a adversidade que enfrentou a ajuda a ver algo de diferente de tudo o que os outros fazem.

Foi o que ocorreu com tantos sobreviventes do Holocausto. Aqueles que conseguiram viver além do sofrimento passaram a ter uma vida extraordinária. Transmitiram a tragédia que vivenciaram e contribuíram para mudar o mundo.

Isso se aplica no caso dos pioneiros empreendedores brasileiros. Na origem de cada um deles há uma adversidade que representou uma ruptura em sua trajetória de vida.

O segundo aspecto que torna uma pessoa resiliente é o fato de ir muito cedo ao encontro do outro. Imigrantes não tiveram outra opção, e isso conduz a uma sensibilidade transcultural.

Um dos maiores empreendedores na história empresarial brasileira foi o imigrante Leon Feffer, fundador do grupo Suzano. Houve um tempo de tal pobreza em sua existência que, ao terminar a jornada de trabalho na Ucrânia, onde nasceu, ele revirava sacos vazios a procura de alguns gramas de sal ou de açúcar ainda presas ao tecido do fundo. Era como adoçava o chá ou temperava a sopa de cada dia.

Para sobreviver, suas irmãs faziam velas numa modestíssima indústria caseira enquanto ele fabricava cigarros artesanais, reciclando o fumo de tocos de charutos.

Foi uma vida de altos e baixos, a de Leon Feffer. Numa determinada época, o estoque de mercadorias de seus negócios cabia debaixo da cama. Bem mais adiante, as suas plantações de eucaliptos compreendiam 90 milhões de árvores em 72 fazendas, totalizando 90 mil hectares somente no estado de São Paulo.

Papel se faz a partir de celulose, que era então produto importado e de disponibilidade incerta —como ficou, aliás, duramente demonstrado durante os anos de guerra.

Foi nesse momento que o fundador do grupo Suzano tomou a decisão que iria inscrever seu nome na lista dos grandes inovadores da indústria brasileira: investir em pesquisas sobre a produção de celulose a partir do eucalipto.

Outra dimensão que vamos encontrar nos pioneiros é a valorização do conhecimento do outro. São pessoas humildes no sentido do desconhecimento de competências tecnológicas e que, para alcançar a sabedoria, se valem do conhecimento dos outros. Integram o quadro econômico e social de sua época e, ao respeitar a cultura alheia, abrem portas para a resiliência.

O mais importante que aprendi com os pioneiros dos negócios é que fazem da riqueza material um meio para realizar um sonho, em vez de fazer da riqueza seu sonho. A riqueza é um meio e o sonho, a realização.

Nenhum deles disse “quero ser a pessoa mais rica do mundo”. Ao contrário: quanto mais acumulavam riqueza, mais ambiciosos eram seus sonhos.

E no caso das empresas, como isso se aplica? E o que é a resiliência das empresas?
A primeira condição para que uma empresa seja resiliente é o que chamo de consciência disseminada dos riscos, ou seja, a empresa conhece os riscos que enfrenta.

O esforço para mitigar os riscos é o que conduz à resiliência em relação às incertezas econômicas, geopolíticas e ambientais. Não por acaso os bancos são, em geral, as empresas mais resilientes pela capacidade de monitorar riscos.

Mais recentemente, no quesito ambiental, vimos grandes empresas, inclusive no setor de mineração, que se preocuparam mais com a área financeira do que com os riscos ambientais e estão pagando muito caro por isso.

A segunda dimensão diz respeito à governança estratégica. Do que se trata? Da capacidade de monitorar tendências, de olhar mais para fora do que para dentro, onde se engalfinham as disputas de poder. As empresas que assim agem obtêm respostas muito mais rápidas às expectativas dos stakeholders.

A terceira dimensão é a capacidade de inovação diante das transformações, quer sejam tecnológicas, de padrões de consumo ou de estilo de vida. É como lidar com o desafio de mudanças oferecendo novas soluções para velhos problemas. E, finalmente, são empresas capazes de se reposicionar frente a tendências disruptivas, demográficas e, como agora, sanitárias.

São capazes de se transformar num entorno que também está se transformando, dentro de suas cadeias setoriais ou invadindo outras cadeias. Isso se constata desde os tempos da era Vargas até nossa era digital.

Há uma correlação entre a perenidade de uma empresa e seu controle familiar?
Um estudo da Universidade Harvard comparou o impacto da crise financeira de 2008 sobre as empresas que tinham uma influência do grupo familiar daquelas geridas exclusivamente por profissionais guiados por métricas com bônus e premiações em função de seu desempenho financeiro.

Observou-se que o primeiro grupo, pelo fato de cultivar uma memória e disposição de legar parte do patrimônio recebido às gerações futuras, gerou nestas empresas, em seus colaboradores e nos conselheiros uma consciência de riscos muito maior do que naquelas com profissionais obrigados a apresentar resultados trimestrais ou semestrais que impactavam suas remunerações.

Esse estudo provocou mudanças na política de bônus de muitas companhias ao estabelecer que uma parte somente poderia ser retirada após três, quatro ou cinco anos. No fundo, isso induz o profissional a assumir um tipo de comportamento semelhante ao de uma influência familiar. O indivíduo passa a pensar no curto, médio e longo prazo da empresa.

Jacques Marcovitch, 74

Ex-reitor da USP (Universidade de São Paulo) —esteve à frente da instituição no período de 1997 a 2001—, é o criador e coordenador do programa Pioneiros & Empreendedores.

Foi ainda o presidente das Companhias de Energia do Estado de São Paulo (1986-1987) e secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo (2002).

Formado em administração, fez mestrado na Universidade Vanderbilt e doutorado na USP


Um dos pilares da longevidade de um negócio é a qualidade de suas esquipes, que vão passando o bastão geração após geração; as reportagens deste caderno são de autoria de jornalistas que simbolizam esse tipo de legado.

Nelson Blecher

É jornalista especializado em economia e negócios. Foi repórter especial, criador e editor do caderno Negócios da Folha, editor-executivo da revista Exame, cocriador e diretor de redação da revista Época Negócios e detentor de dois prêmios Fiat Allis de Jornalismo Econômico

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