Descrição de chapéu Coronavírus

Mortes por Covid desamparam famílias e deixam Brasil R$ 165,8 bi mais pobre

Segundo pesquisa da FGV, 398 mil brasileiros mortos pela doença deixam vazio em inovação, criatividade e produção nacional

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São Paulo

Até esta sexta-feira (14), 432.785 brasileiros haviam morrido de Covid-19. Mães, pais, esposas, maridos, avós, avôs, tios, filhos, sobrinhos, netos. Mas também profissionais estabelecidos, estudantes, talentos promissores.

Pedreiros, engenheiros, músicos, advogados, professores —a lista é diversa e longa— cuja perda desestrutura famílias e deixa o país mais pobre.

O pesquisador Claudio Considera, do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), tentou medir as milhares de mortes pelo aspecto econômico e social.

Em outras palavras, contabilizar a perda de renda e de suporte financeiro que podem desestruturar famílias e o desperdício de conhecimentos e habilidades profissionais, um conjunto denominado como capital humano.

Com base em informações do Portal de Transparência do Registro Civil, Considera estimou a contribuição que seria dada pelos 398 mil brasileiros que morreram de Covid de 13 de março de 2020, quando foi notificada a primeira morte, até 30 de abril deste ano.

Do total, 197,5 mil pessoas tinham de 20 a 69 anos e 200,5 mil tinham 70 anos ou mais.

Olhando para frente e considerando a expectativa de vida no Brasil, a parcela dos que tinham de 20 a 69 anos vai deixar de gerar R$ 165,8 bilhões em rendimentos para suas famílias, segundo os cálculos do pesquisador.

Sala de ensaios de coro da Osesp vazia, com o púlpito e um piano
Sala do coro, usada pela maestrina Naomi Munakata para ensaios - Eduardo Knapp/Folhapress

Olhando para trás, nesse período de quase um ano, eles deixaram de gerar R$ 10,1 bilhões. Desse valor, R$ 5,4 bilhões se referem aos salários de pessoas até 69 anos e R$ 4,7 bilhões são rendimentos dos mortos com 70 anos ou mais.

O valor de R$ 10,1 bilhões equivale a 0,4% da massa de rendimentos. No entanto, corresponde a cerca de um terço do Bolsa Família e quase um quarto do valor previsto a ser gasto na extensão do auxílio emergencial.

Já as perdas futuras de R$ 165,8 bilhões equivalem a cinco orçamentos de Bolsa Família e a cerca de quatro vezes o gasto previsto para 2021 com o novo auxílio.

Como o número de mortes já aumentou de lá para cá e continuará a avançar, os valores vão crescer.

Não há, porém, como medir as perdas em termos de inovação, criatividade, resiliência para lecionar, espírito público na defesa de causas socioambientais ou de conhecimento para fazer uma reforma jurídica, por exemplo.

A produção cultural brasileira não será a mesma sem o comediante Paulo Gustavo, morto aos 42 anos. O mercado imobiliário de São Paulo terá outro perfil sem o empresário Walter Torre, falecido aos 64.

Muitos embates na formulação de leis não ocorrerão sem o senador Major Olímpio, morto aos 58. O tom no Coral Paulistano Mário de Andrade será outro sem a maestrina Naomi Munakata, levada pela doença aos 64 anos.

As festas de aniversário de Naomi eram sem música. Como o som era um instrumento de trabalho, o silêncio era guardado para o lazer na casa da maestrina que comandou o Coro da Osesp por duas décadas e, mais tarde, o Coral Paulistano Mario de Andrade, conta Kazumi, seu irmão mais velho.

Ela deixou o Japão aos dois anos e os pais tiveram mais dois filhos. Em casa, as crianças começaram cedo a estudar piano. Kazumi não tinha jeito para a música; ela descobriu sua vocação de uma outra maneira.

Uma lenda de família conta que o pai deles montou um coral ainda no navio que trouxe os Munakata ao Brasil. O coral de imigrantes continuou em São Paulo e nele Naomi teve sua primeira experiência como regente.

“Ela era toda certinha, não que fosse sisuda, mas era tão obstinada quanto brilhante. O que me impressionava era como ela gostava de fazer o que ninguém mais fazia”, diz o irmão, que é professor da PUC-SP.

Em março de 2020, Naomi Munakata começou a sentir os sintomas da Covid-19. Relutou em ir ao hospital, de onde não sairia com vida. O seu último pedido feito ao irmão foi para que regasse as plantas —​o que ele faz até hoje. Como não puderam se despedir, às vezes parece que ela não se foi.

A maestrina investiu para que além das vozes, o coral tivesse formação musical, fossem músicos além de cantores, diz a gerente do coral, Cláudia dos Anjos, braço direito dela na Osesp.

“Ela ampliou o repertório de canto coral e era apaixonada tanto por compositores franceses, como Claude Debussy, quanto pelo brasileiro Aylton Escobar, seu maior parceiro.”

O mais importante, Cláudia ressalta, é que o legado da artista continue vivo e que sua dedicação à música seja sempre lembrada.

“Ela acordava cedo e dormia tarde, falava que a vida era importante. Foram anos de estudos e trabalho duro, um conhecimento que não se pode perder por culpa de um vírus.”


R$ 5,4 bilhões/ano
Perda de renda dos mortos por Covid no Brasil de 20 a 69 anos

R$ 4,7 bilhões/ano
Perda de renda dos mortos por Covid no Brasil a partir de 70 anos

R$ 165,8 bilhões
Perda de renda futura na faixa de 20 a 69 anos, de acordo a expectativa de vida

Fonte: FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), com dados do Portal de Transparência do Registro Civil, de 16/03/20 a 30/04/21, e do relatório Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2019 como fonte para o rendimento real das pessoas.


Comparado a outros problemas de saúde, a perda do Brasil em razão de mortes prematuras provocadas por doenças crônicas, como problemas cardíacos, câncer, derrames e diabetes, foi estimada em cerca de R$ 25 bilhões ao ano pela OMS (Organização Mundial da Saúde), em valores atualizados.

Acidentes de trânsito geram uma perda anual de R$ 132 bilhões, segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2018. Os custos anuais com mortes violentas são estimados em 2,3% do PIB (R$ 170 bilhões, atualmente).

Entre os colegas da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), a pergunta “o que Marcelo Menin faria?” já tinha virado uma espécie de mantra. A fala calma denunciava a timidez do biólogo, mas também marcava a dedicação aos alunos e a habilidade com que contornava os problemas que surgiam no cotidiano da universidade.

Estudante de escola pública do interior de São Paulo, ele sempre sonhou em ser biólogo e pesquisador na Amazônia.

O professor era um herpetólogo (especialista em répteis e anfíbios) renomado e fez contribuições importantes para aumentar o conhecimento sobre o comportamento de anfíbios da Amazônia. Adorava o que fazia, conta a sua companheira, Sumaia.

“Um dia, em dezembro, quando todos em casa estávamos com Covid-19, olhei para o Marcelo e disse o quanto tinha orgulho dele”, recorda.

Menin passou quase 15 dias na UTI, com a família torcendo para que não faltasse oxigênio no hospital, como em outras unidades de saúde da cidade. Em 21 de janeiro, a 20 dias de completar 46 anos, ele se tornou mais uma vítima do novo coronavírus.

Deixou a mulher, dois enteados e uma filha, Maria Clara, de nove anos.

Amiga e colega de trabalho de Menin, a professora Juliana Araújo tenta dimensionar a perda que a morte dele, após 20 anos dedicados à profissão, representa para a ciência.

“A formação de um cientista é muito singular e ele ajudou a montar um curso de pós-graduação em zoologia, estava no auge da produtividade e era tão apaixonado pela profissão, que a gente sempre brincava que ele ficaria na universidade até os 70 anos. É irreparável”, lamenta.

Sem poder contar com a principal fonte de renda da casa, a família do cientista também viu seu orçamento cair para cerca de um quarto do que era antes. Para se distrair e ajudar nas contas da casa, a viúva passou a fazer e vender jogos de mesa, que divulga por meio de sua conta no Instagram.

“Eu não trabalhava desde 2014, para cuidar da nossa filha, que tem uma doença autoimune. Não foi só uma perda emocional”, diz.

Mesa com livro, anotações e óculos do cientista Marcelo Menin, morto por Covid-19
Uma das últimas anotações do professor Marcelo Menin - Susan Valentim/Arquivo Pessoal

R$ 10,1 bilhões
Perda de renda com a morte de 398 mil brasileiros com mais de 20 anos por Covid

O valor equivale a:

  • 0,4% da massa de rendimentos
  • Cerca de um terço do Bolsa Família
  • Quase um quarto da extensão do auxílio emergencial

Segundo o pesquisador do FGV Ibre Claudio Considera, mais importante do que o valor global dessas perdas, são os efeitos para aquelas famílias que, além da tragédia pessoal, vão enfrentar dificuldades nos próximos anos para sobreviver com uma renda menor.

Considera afirma que, no ano passado, as mortes estavam mais concentradas em pessoas mais velhas, muitas delas aposentadas e responsáveis por grande parte da renda de suas famílias.

Desde então, aumentou a proporção entre os mortos de pessoas mais jovens, que tinham expectativa maior de vida e de mais tempo de atuação laboral e passagem de conhecimentos.

“A perda de capital humano que está ocorrendo no Brasil é uma coisa terrível. E a gente está medindo de uma maneira muito simples ainda”, afirma o pesquisador.

“Se fosse medir realmente o que essas pessoas tinham de conhecimento e o que elas deixam de passar, por terem morrido de forma antecipada, é uma barbaridade. O Brasil vai sentir muito a falta dessas pessoas”, afirma Considera, que cita a ainda o caráter pessoal dessas perdas para cada família.

O pesquisador aponta que a perda de capital humano não se limita às questões relacionadas a mortes. Ele cita o relatório divulgado pelo Banco Mundial em setembro do ano passado sobre o Índice de Capital Humano 2020.

No documento, a instituição afirma que a pandemia colocou em risco uma década de avanços na construção do capital humano, entendido como o conhecimento e as habilidades que as pessoas acumulam ao longo de suas vidas e que são fundamentais para desbloquear o potencial e incrementar o crescimento econômico em todos os países.


R$ 25 bilhões/ano
Perda do Brasil em razão de mortes prematuras por doenças crônicas

R$ 132 bilhões
Custo dos acidentes de trânsito

R$ 170 bilhões (2,3% do PIB)
Custos anual com mortes violentas


Conforme já relatado por diversas pesquisas, a redução no tempo de estudo presencial e o desemprego persistente durante a crise atual estão entre os problemas que devem afetar o capital humano no país nos próximos anos ou até décadas.

Na empresa criada por Manoel Durães, vai ser preciso contratar três profissionais para suprir a ausência do engenheiro. A companhia faz instalação e manutenção de equipamentos de refrigeração em hospitais de São Paulo —em uma das visitas para inspeção, ele se contaminou com a Covid-19.

Quando o empresário de 64 anos foi internado, o cotidiano da família passou a girar em torno das notícias que vinham dos médicos. As informações nunca eram de melhora, mas os filhos mantinham a esperança.

Ele lutou pela vida por 48 dias na UTI.

“Conseguimos manter a empresa operando, os funcionários tinham muito carinho por ele e abraçaram o desafio. Mas todo o conhecimento de mercado e dos sistemas era dele. Perdemos a nossa referência”, conta a filha de Durães, Andréia, que assumiu a empresa com a morte do pai.

De origem humilde, Durães vendia amendoim em trens, e se formou com sacrifício em engenharia elétrica e administração. Dos filhos, cobrava a mesma dedicação aos estudos e a independência. Era atencioso com a mãe e carinhoso com os netos, lembra Andréia.

“Todos os funcionários tinham alguma história para contar sobre o meu pai, eles sempre vêm falar o quanto ele os ajudou. É uma ausência difícil de dimensionar, algo que milhares de famílias brasileiras sentem agora e não sei se um dia essa saudade vai passar.”

Crachá de Manoel Durães, empresário de São Paulo
Crachá do empresário Manoel Durães - Arquivo Pessoal
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