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Uma cultura de medo na empresa que administra a fortuna de Bill Gates

Pelo menos quatro empregados da empresa Cascade Investments queixaram-se a Gates sobre Michael Larson, que administra o patrimônio do bilionário

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The New York Times

Há 27 anos, Bill Gates confia a administração de sua enorme fortuna e do fundo que custeia sua gigantesca fundação a um só homem: Michael Larson.

Larson investiu o dinheiro do fundador da Microsoft em terras agrícolas, hotéis, ações, títulos e até em uma casa de boliche. Graças em parte a Larson e à disparada nas ações da Microsoft, a fortuna de Gates cresceu de menos de US$ 10 bilhões (R$ 52,8 bilhões) para cerca de US$ 130 bilhões (R$ 686,8 bilhões).

Mas Larson, 61, também está envolvido em um padrão de delitos de conduta no trabalho na empresa que administra o patrimônio de Gates, a Cascade Investment, de acordo com 10 ex-funcionários da empresa e com outras pessoas que a conhecem bem.

Ele julgou funcionárias da empresa abertamente por seus atrativos físicos, mostrou a colegas fotos de mulheres nuas na internet, e em diversas ocasiões fez comentários sexualmente inapropriados. Fez um comentário racista a uma subordinada negra. Intimidou alguns colegas. Quando uma empregada anunciou que estava saindo da Cascade, Larson retaliou tentando derrubar o preço das ações da empresa pela qual ela tinha sido contratada.

O bilionário Bill Gates em discurso durante uma conferência em Lyon, na França - Ludovic Marin - 21.ja.21/AFP

Ao longo dos anos, pelo menos seis pessoas –entre as quais quatro empregados da Cascade– queixaram -se para Gates sobre Larson, de acordo com diversos ex-empregados e pessoas diretamente informadas sobre as queixas (e diversas delas também se queixaram à mulher de Gates, Melinda French Gates.)

A Cascade fez pagamentos a pelo menos sete pessoas que testemunharam o comportamento de Larson ou estavam informadas sobre ele; em troca, elas se comprometeram a não falar sobre a companhia.

O quadro de pessoal da Cascade cresceu para mais de 100 pessoas, e a empresa administra mais dinheiro do que muitos fundos de hedge de Wall Street, mas a percepção de que Larson contava com apoio irrestrito de Gates permitiu que ele mantivesse uma cultura de medo nos escritórios da companhia, disseram ex-funcionários. Larson continua no comando da Cascade.

A relutância de Gates em agir de modo decisivo reforça o retrato que vem emergindo sobre o filantropo bilionário, e contrasta com sua imagem de benemerência e de defensor de causas femininas.

Como o The New York Times noticiou, Gates por diversos anos conviveu com Jeffrey Epstein, que enfrentou acusações de tráfico sexual de meninas –um relacionamento que está entre os fatores que precipitaram a recente decisão de French Gates de pedir divórcio.

Em pelo menos algumas ocasiões, Gates buscou relacionamentos com mulheres que trabalhavam para ele na Microsoft ou na Bill and Melinda Gates Foundation. Em 2019, o conselho da Microsoft investigou um desses casos, e Gates reconheceu que havia tido um caso com uma subordinada. Gates deixou seu posto no conselho da companhia este ano.

Larson e Chris Giglio, seu porta-voz, negaram alguns dos exemplos apontados de conduta inapropriada da parte de Larson, mas não todos.

“Durante seu período à frente da empresa, Larson supervisionou o trabalho de mais de 380 pessoas, e houve um total de menos de cinco queixas relacionadas a ele”, disse Giglio. Ele acrescentou que “quaisquer queixas foram investigadas e tratadas com seriedade, e nenhuma delas justificaria a demissão de Larson”.

Giglio e Bridgitt Arnold, porta-voz da Gates, disseram que a BMGI (Bill and Melinda Gates Investments), outro nome pela qual a Cascade é conhecida, tem normas robustas em vigor para lidar com queixas de empregados sobre possíveis delitos.

“A BMGI encara todas as queixas com seriedade e busca tratá-las de maneira efetiva a fim de garantir um ambiente de trabalho sério e respeitoso”, disse Giglio.

Arnold disse que “a BMGI não tolera comportamento inapropriado”. Ela acrescentou que “qualquer questão despertada ao longo da história da companhia foi tratada com seriedade e resolvida de maneira apropriada”.

Larson afirmou que “definir a BMGI com o um ambiente de trabalho tóxico é injusto para com os 160 profissionais que formam nossa equipe e fazem nossa cultura”.

Courtney Wade, porta-voz de French Gates, disse que “Melinda condena inequivocamente qualquer conduta desrespeitosa e inapropriada no local de trabalho. Ela não estava ciente da maioria dessas acusações, por sua falta de propriedade e controle da BMGI”.

Alguns antigos empregados da Cascade se recusaram a comentar por conta de acordos de confidencialidade que os proíbem de discutir seu período de trabalho na empresa. Outros falaram sob a condição de que seus nomes não fossem mencionados, por temerem represálias.

Anos depois de terem saído da Cascade, algumas dessas pessoas continuavam a ter dificuldade para falar de Larson sem se sentirem perturbadas.

Um nome genérico

Antes de Larson, o conselheiro financeiro de Gates era Andrew Evans, um velho amigo que no passado serviu uma sentença de prisão de seis meses por fraude bancária (Gates o visitou na prisão). Quando a ficha criminal de Evans foi destaque em um artigo de primeira página do The Wall Street Journal, em 1993, Gates saiu em busca de um novo administrador para seu patrimônio.

No ano seguinte, ele contratou Larson, que até então era administrador de fundos na Putnam Investments. Em 1995, a Cascade foi criada no estado de Washington.

O nome genérico, sem referência a Gates, permitiu que Larson dirigisse uma vasta operação de investimento, mas mantivesse um perfil público discreto.

Desde o começo, a Cascade, cuja única função era administrar o dinheiro de Gates, manteve conexões fortes com o restante do universo de Gates, o que inclui a Microsoft. A empresa tem sua sede no mesmo complexo de escritórios, em Kirkland, Washington, no qual Gates mantém o escritório de sua companhia pessoal, a Gates Ventures, e do outro lado da rua fica o escritório da Pivotal Ventures, a organização pessoal de Melinda French Gates.

Ao longo dos anos, houve circulação de pessoal da Cascade para a Fundação Gates, a Microsoft, as empresas pessoais do casal Gates e o K&L Gates, escritório de advocacia no qual o pai de Gates foi apontado como sócio. Em 2005, quando a Cascade precisava de um novo executivo de recursos humanos, a empresa contratou uma veterana da Microsoft.

Larson costumava contratar pessoas recém-formadas ou nos estágios iniciais de suas carreiras. Os formandos do Claremont McKenna College, onde ele mesmo estudou, pareciam estar entre seus favoritos. A faculdade conta com diversas bolsas de estudo bancadas por Larson.

Alguns empregados viam a oportunidade de trabalhar na Cascade como uma maneira de fazer do mundo um lugar melhor. A empresa também administra a dotação de US$ 50 bilhões (R$ 264,1 bilhões) da Fundação Gates, então ajudá-la a se sair bem significaria mais dinheiro para coisas como o combate à malária e o financiamento à educação.

Outros diziam-se atraídos pela oportunidade de trabalhar para Gates, que fundou a Microsot, com Paul Allen, em 1975.

Ao longo de seu período no comando da companhia, Larson conquistou retornos firmes para Gates. Investiu principalmente em ações antiquadas e subvalorizadas, deixando de lado as ações de tecnologia mais quentes. Quando a bolha da internet estourou, em 2000, a estratégia dele provou seu valor.

Larson também protegeu os ativos de Gates contra quedas mais severas na recessão de 2008 e 2009.
Ele começou a diversificar seus investimentos, apostando em imóveis e em hotéis de luxo. Adquiriu uma participação acionária de 47,5% na cadeia de hotéis Four Seasons. Também comprou vastas terras agrícolas, o que de acordo com algumas estimativas faz de Gates o maior proprietário rural privado dos Estados Unidos.

Buscar os maiores retornos possíveis nem sempre era o objetivo. A norma, de acordo com um ex-empregado, era que “não queremos o nome de Bill nas manchetes”.

'Você mora no gueto'

No segundo trimestre de 2004. Stacy Ybarra decidiu deixar seu emprego na Cascade e trabalhar para a infoSpace, uma empresa de internet.

Ybarra tinha 30 anos, e tinha começado na Cascade três anos antes como analista de relações com investidores. Depois que ela anunciou seu plano de se demitir, Larson ficou tão furioso que começou a operar a descoberto contra as ações da InfoSpace, de acordo com três pessoas informadas sobre o episódio —ele apostou em queda de preços das ações da companhia, no mercado futuro, o que pode ajudar a forçar quedas.

Duas pessoas dizem ter visto operações realizadas por Larson, em seus terminais de computador. Larson disse a Ybarra que ele e outros investidores estavam apostando contra as ações da InfoSpace por birra, de acordo com três pessoas, que ouviram o que ele disse naquele momento.

Giglio confirmou que a Cascade havia realizado apostas na baixa das ações da InfoSpace, mas negou que isso tivesse acontecido porque Larson quisesse prejudicar Ybarra. Ao mesmo tempo, Larson a pressionou repetidamente para ficar na Cascade. Ela, por fim, concordou em ficar.

No dia da eleição presidencial de 2004, Larson perguntou a alguns empregados da Cascade no escritório qual era o melhor horário para votar. Ybarra, que é negra, respondeu que havia votado naquela manhã sem ter de esperar na fila.

Larson rebateu: “Mas você mora no gueto, e todo mundo sabe que os negros não votam”. A cena foi descrita por duas pessoas que ouviram o comentário e uma terceira a quem o episódio foi relatado mais tarde. Giglio nega que Larson tenha dito isso.

Pelo menos um empregado da Cascade queixou-se ao departamento de recursos humanos sobre a declaração. A queixa chegou a Gates e French Gates, que mais tarde conversaram com Ybarra como parte de uma investigação interna, de acordo com a pessoa informada sobre o assunto.

Em janeiro de 2005, Ybarra deixou a Cascade, recebendo uma pequena indenização, e assinou um acordo que a impedia de falar sobre a empresa no futuro.

“Quando essas queixas foram apresentadas, mais de 15 anos atrás, a BMGI as encarou com seriedade”, e contratou um advogado independente para investigar, disse Giglio.

Ele acrescentou que era procedimento padrão na Cascade que os empregados assinassem acordos de confidencialidade ao receberem pagamentos na saída da companhia.

Potencial de causar embaraço

Em novembro de 2006, Gates e French Gates receberam outra queixa sobre Larson. Essa veio de Robert Sydow, um administrador de fundo de investimentos da Califórnia que tinha sido amigo de Larson e cuja empresa, a Grandview Capital Management, havia sido contratada por Larson para administrar US$ 1,6 bilhão (R$ 8,4 bilhoes) em capital da Fundação Gates.

Sydow escreveu uma carta de seis páginas aos Gates acusando Larson de romper abruptamente a ligação entre a Cascade e a Grandview, depois de uma disputa —a disputa, escreveu Sydow, veio depois que Sydow alertou Larson de que ele “precisava parar de usar seu poder para prejudicar os outros, quando está com raiva”.

A carta a que o The New York Times teve acesso afirmava que Larson havia prejudicado a reputação da Grandview, em parte pela difusão de informações “falsas e difamatórias” sobre a companhia no mercado.

Sydow, que é padrinho de um dos filhos de Larson, em seguida descreveu diversos casos em que Larson buscou punir empregados que deixaram a Cascade, e suas retaliações contra pessoas que cooperaram com a investigação sobre o tratamento a Ybarra, entre outras coisas. Larson tem “o potencial de causar grandes embaraços a vocês e à fundação”, escreveu Sydow.

“Nós assinamos acordos de rescisão com administradores externos de investimento por diversas razões”, afirmou Larson em um comunicado enviado por Giglio.

Depois da saída de Ybarra, Cascade contratou uma nova chefe de recursos humanos, Kathy Berman. Ela havia trabalhado na Microsoft, mais recentemente como diretora de recrutamento de executivos.

Por volta daquela época, também surgiram esforços para criar distância física entre Larson e alguns empregados da Cascade, o que incluiu transferir algumas pessoas a um andar diferente daquele em que ficava o escritório de Larson, de acordo com três ex-funcionários. Giglio disse que a moral dos empregados era elevada.

Funcionários da Cascade, entre os quais Larson, tiveram de passar por um treinamento sobre assédio sexual e sensibilização. Larson não parece ter encarado o processo com seriedade, disse um ex-empregado.

“Não precisamos disso”, o ex-empregado recorda tê-lo ouvido dizer.

Giglio diz que isso não aconteceu. A conduta de Larson não melhorou, disseram ex-empregados da Cascade.

Em emails, às vezes ele criticava colegas chamando-os de “estúpidos” ou definindo seu trabalho como “lixo”, de acordo com diversas pessoas que viram as mensagens—os emails vieram a ser conhecidos como “bombas de Larson”.

Em reuniões, ele às vezes descartava propostas de subordinados com comentários como “essa é a ideia mais imbecil que já ouvi”.

“Anos atrás, mais cedo em minha carreira, eu usava linguagem áspera que não usaria hoje”, afirmou Larson em sua declaração. “Lamento muito por isso, e trabalhei bastante para mudar”.

Em uma festa de Natal no escritório, na metade da década de 2000, Larson estava sentado ao ar livre com um pequeno grupo de funcionários, todos homens, de acordo com um dos presentes. Havia três colegas mulheres posicionadas a alguns metros de distância.

“Com qual delas vocês queriam [fazer sexo]?”, Larson perguntou aos homens, usando um termo chulo.

Quando uma das empregadas da companhia começou um programa do Vigilantes do Peso, Larson lhe perguntou: “Você está perdendo peso para mim?”, de acordo com alguém que ouviu a conversa. Outro ex-empregado da Cascade disse que Larson perguntava a colegas homens se certas funcionárias eram solteiras.

Em pelo menos uma ocasião, nos últimos anos, Larson exibiu fotos de mulheres nuas em seu celular, na presença de empregados, e as comparou a Berman, a executiva de recursos humanos, de acordo com um ex-empregado que testemunhou o incidente e com outra pessoa que foi informada a respeito. Berman deixou a Cascade em 2015.

Outra mulher que trabalhou na Cascade disse que Larson pediu que ela fizesse um strip-tease, por uma certa quantia em dinheiro. Ele negou todos esses comentários. “Não é verdade”, afirmou.

Um contrato cancelado

Cerca de três anos atrás, Megan Scott, a chefe de gabinete de Larson, se queixou aos Gates sobre ele, de acordo com três pessoas informadas sobre o assunto.

Entre suas preocupações havia o fato de que Larson estava se preparando para assinar um contrato de cinco anos com uma empresa de recrutamento de pessoal que estava sendo aberta por uma ex-empregada da Cascade, Pamela Harrington, disseram duas pessoas. O contrato proposto pagaria à empresa de Harrington uma taxa anual que começava em US$ 1,5 milhão (R$ 7,9 milhões) e com o tempo se reduziria a US$ 400 mil (R$ 2,1 milhões), disse Mitchell Langberg, advogado de Harrington.

Scott e outro empregado queixaram-se aos Gates sobre o que viam como relacionamento pessoal estreito entre Larson e Harrington, disseram as pessoas.

“Essa afirmação é injusta e emana de um ex-empregado insatisfeito que tentou ao máximo solapar a reputação de Harrington, uma pessoa realizada e de grande sucesso por direito próprio”, disse Giglio.

Gates disse a Larson que cancelasse o contrato proposto com a empresa de Harrington, disseram as pessoas. Giglio afirma que a decisão era parte de uma campanha para “não terceirizar tantas funções internas, entre as quais o recrutamento”.

Em 2019, isso aparentemente havia mudado. Langberg disse que a BMGI havia firmado um contrato exclusivo de recrutamento com a empresa de Harrington em dezembro daquele ano. “Harrington vem prestando serviços sob aquele contrato desde então”, disse.

Na época em que surgiram as queixas relacionadas a Harrington, Larson estava fazendo propostas sexuais repetidas, e recebendo rejeições repetidas, à gerente de uma loja local de bicicletas que era controlada majoritariamente pela Rally Capital, uma empresa na qual a Cascade investiu.

Em 2017, a gerente contratou um advogado, que enviou uma carta a Gates e French Gates advertindo que se Larson não parasse de assediar sua cliente ela processaria a companhia. A carta afirmava que Larson havia dito à gerente que queria fazer sexo com ela e outra mulher, de acordo com uma pessoa que a leu.

Gates chegou a um acordo para encerrar a questão, pagando uma indenização à gerente da loja de bicicletas. French Gates insistiu em que o incidente e a cultura da Cascade fossem revisados por um investigador externo, pessoas informadas sobre o assunto haviam informado anteriormente ao The New York Times. Em 2018, Larson entrou em licença remunerada enquanto a investigação era realizada.

Na época, Gates disse a um empregado da Cascade que duvidava que Larson viesse a retornar, de acordo com uma pessoa informada sobre a conversa.

Jessie Harris, advogado do escritório de advocacia Williams Kastner, de Seattle, conduziu a investigação. Ele concluiu que não era possível substanciar as afirmações da gerente da loja de bicicletas.

“Você precisa saber que Michael desejava contestar as acusações durante toda a investigação”, disse Giglio. “Mas a decisão final obviamente não cabia a ele”.

Larson voltou de sua licença em 2019. O vice-presidente de operações da Cascade deixou a empresa na ausência de Larson, e Scott saiu pouco depois de seu retorno.

Para reduzir a influência de Larson sobre a Cascade, Gates o instruiu a contratar um novo vice-presidente de operações., disse um ex-empregado da Cascade. Giglio disse que esse processo envolveu um comitê de seleção e uma consultoria externa de recursos humanos.

O escolhido foi um colega de universidade e de curso de administração de empresas de Larson.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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