Fusões e aquisições batem recorde, mas nem todas devem prosperar

Segundo a KPMG, primeiro trimestre deste ano não tem paralelo com outros períodos do gênero desde que iniciaram o levantamento dessas operações no início dos anos 2000

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília e São Paulo

As operações de fusão e aquisição disparam no país bateram recorde no primeiro trimestre deste ano. Segundo dados da KPMG, que faz levantamentos sobre esses negócios desde o início dos anos 2000, foi o melhor trimestre da história.

Segundo a consultoria foram 375 operações no período, alta de 31% sobre o mesmo intervalo do ano passado (286) e um salto de 47% sobre as 255 do último trimestre de 2020. O recorde anterior era 352, no quarto trimestre de 2019.

De acordo com Luis Motta, sócio-líder de assessoria em fusões e aquisições da KPMG no Brasil, o crescimento se deve ao ambiente de grande liquidez combinado à necessidade de mudanças nas companhias, para adaptar o negócio à pandemia.

Jeane Tsutsui, presidente do Grupo Fleury, na sede da empresa
Jeane Tsutsui, presidente do Grupo Fleury, na sede da empresa no Jabaquara, em São Paulo; companhia comprou 12 empresas nos últimos cinco anos - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Tanto é assim que algumas empresas fazem compras em série desde o ano passado. É o caso de Magazine Luiza. Do início de 2020 até maio deste ano, fechou 17 negócios.

Mas para a doutora em psicologia Betânia Tanure de Barros, sócia da consultoria BTA (Betania Tanure Associados), especializada em comportamento organizacional, a rapidez com que as operações têm sido fechadas durante a pandemia pode ser um complicador na consolidação do novo negócio.

Levantamento da consultoria aponta que 68% das operações de fusão e aquisição no Brasil nos últimos cinco anos não geraram riqueza após o negócio. Ou seja, essas operações não atingiram os objetivos propostos, seja em ganhos de sinergia ou em retorno para os acionistas. A principal dificuldade está nas diferenças culturais entre as organizações.

"O day after entre comprados e compradores continua sendo o grande desafio", diz a especialista, ao destacar cinco tipos diferentes de integração, que carecem de estratégias distintas.

São elas: assimilação (quando a cultura da compradora prevalece), transformação (quando uma terceira cultura é formada a partir da união), mescla (um equilíbrio entre as duas), pluralidade (as duas mantêm a sua independência cultural), e movimento reverso (a da comprada prevalece).

"Este último caso é o mais difícil de acontecer", diz Betânia. "É muito raro que a compradora lide com o seu ego e reconheça que a comprada tem mais qualidades do que ela própria", afirma, lembrando que, em uma aquisição, o sentimento mais comum dentro das companhias é o de ganhadores e perdedores.

"Tem início uma guerra surda, entre quem fica e quem sai da nova companhia formada. Enquanto isso, o cliente fica de escanteio, o que se torna péssimo para os negócios."

Para evitar a queda no clima organizacional, é fundamental que o principal executivo lidere a integração, garantindo que o melhor de cada empresa seja preservado ou que uma nova cultura possa emergir.

Uma das empresas com mais fome de aquisições nos últimos tempos é o Fleury: o grupo de medicina diagnóstica comprou 12 empresas nos últimos cinco anos, com um desembolso de R$ 1 bilhão. Em boa parte das compras, como a fechada na semana passada —dos laboratórios capixabas Pretti e Bioclínico, por R$ 315,1 milhões—, a empresa manteve o nome das companhias ao lado do seu.

"É um reconhecimento por marcas que são tradicionais em seus respectivos mercados, que criaram uma conexão com clientes e equipe médica", diz a presidente do Fleury, Jeane Mike Tsutsui. O Bioclínico foi fundado há 55 anos e, o Pretti, há 33.

O grupo encerrou o primeiro trimestre com R$ 1 bilhão em caixa e hoje tem cinco novos negócios no radar. No alvo, estão clínicas de especialidades médicas e empresas que ofereçam soluções "health tech". "Nós queremos montar um ecossistema que atua de forma híbrida na jornada de cuidados do indivíduo", diz Jeane.

Segundo Oscar Malvessi, coordenador do curso de fusões, aquisições e valuation da FGV (Fundação Getúlio Vargas), no mundo, mais de 50% das fusões e aquisições não geram riqueza após o negócio. "Isso por conta do orgulho do presidente que compra, a forma com que conduz a integração, a diversidade de visão de negócio entre os acionistas de ambos os lados", diz.

O caso das fintechs é o menos estressante, diz Betânia, porque a compradora está adquirindo competências que não possui internamente. Com isso, o conhecimento e a cultura da adquirida tendem a ser respeitados.

De acordo com a KPMG, a maior parte das operações deste ano é de grandes empresas comprando startups. Em termos de nacionalidade, a maioria das operações (65%) foram domésticas, entre empresas de capital brasileiro. Segundo especialistas, é mais rápido e barato para uma empresa comprar uma menor que forneça o serviço que ela necessita implementar no negócio do que desenvolver do zero internamente.

A maioria dos acordos este ano envolveram empresas de internet (149). Elas também lideraram as operações de 2020 (314 de um total de 1.117). Tecnologia da informação (TI) é o segundo setor com mais fusões e aquisições no início de 2021 (57), e a área com o maior número de operações em toda a série histórica da KPMG, iniciada em 2003, somando 1.646 operações desde então.

"Tivemos muitas transações envolvendo pequenos provedores de internet e empresas de logística para o e-commerce", afirma Motta. "O grande vetor foram as mudanças causadas pela pandemia, e a tendência é que continue. É uma transformação sem volta".

Recursos de abertura de capital vêm irrigando compras

Com a rápida mudança das relações de trabalho e consumo a partir do surgimento do novo coronavírus, companhias tiveram que ser ágeis para se adaptar à nova realidade e sobreviver à crise.

"Geralmente, os anos de crise não geram mais concentração, pois o momento é desfavorável para investimentos a longo prazo, falta dinheiro e o crédito fica caro", diz Motta, da KPMG. "Com a Covid-19 foi diferente, havia muita liquidez e as empresas fizeram ofertas de ações com promessas de aquisições", afirma. Além disso, a taxa básica de juros brasileira permaneceu boa parte do primeiro trimestre na mínima histórica de 2% ao ano. Hoje está em 3,5%.

É o caso da Pague Menos. Em setembro de 2020, a empresa fez seu IPO (oferta inicial de ações, na sigla em inglês) na Bolsa brasileira, levantando R$ 746,9 milhões. Em maio deste ano, a companhia comprou a rival Extrafarma, do grupo Ultrapar, por R$ 700 milhões para aumentar a sua participação no Norte e Nordeste.

"Gera mais retorno do que a expansão orgânica. Quando se abre uma farmácia, a loja tem maturação entre o terceiro e o quarto ano, ainda com o faturamento baixo", diz Luiz Novais, diretor financeiro da Pague Menos.

Segundo ele, o momento é propício para a operação no setor. "Mesmo antes da pandemia, a saúde ia crescer pelo envelhecimento da população", lembra. "O consumo cresce perto de dois dígitos atualmente e, quanto maior a sua escala e a sua presença em varejo, mais você consegue capturar em faturamento e em movimento comercial".

Como ambas as redes atendem o mesmo público —as classes B2, C e D—, e a Ultrapar queria se desfazer das farmácias para focar nas frentes de produção e distribuição de petroquímicos, o negócio caiu como uma luva.

Ainda no varejo, o setor têxtil tem se mostrado aquecido. Dono das marcas Farm e Animale, o Grupo Soma comprou a Hering em abril por R$ 5,1 bilhões, procurando diversificar o portfólio para atender um público de tíquete-médio menor.

"Antes de Hering, operávamos mais em nichos de consumo", diz Gabriel Lobo, diretor de relações com investidores do Grupo Soma. "Com a aquisição, destravamos o mercado endereçável em mais de três vezes".

Segundo Lobo, uma operação de fusão e aquisição era planejada desde o IPO para ampliar o público da companhia. A conversa com a Hering, também disputada pela Arezzo, vinha desde 2014. "A pandemia tende a polarizar as operações. É natural que algumas marcas passem por dificuldade, enquanto outras, com maior capacidade financeira, cresçam", diz Lobo. Nesse processo, lembra, concorrentes são adquiridas.

O setor de moda é um dos mais afetados pela pandemia de coronavírus. Nas últimas semanas, marcas como TNG e Cavalera entraram com pedidos de recuperação judicial.

Para Lobo, sinais de recuperação da economia vistos no início de 2021 são catalisadores para as operações, visto que empresas buscam se posicionar para uma eventual aceleração da atividade no segundo semestre de 2021 e em 2022.

Outras varejistas apostam nesta tendência, como o Carrefour Brasil, que comprou o Grupo Big em março, e a Lojas Americanas, que levou 70% do Grupo Uni.co (dono das marcas Puket e Imaginarium), e se uniu à controlada B2W para formar uma única empresa.

Para Malvessi, da FGV, o movimento de consolidação no varejo deve permanecer ao longo dos próximos meses. "Com a pandemia, muitas varejistas não se deram conta da mudança do padrão de consumo e demoraram para agir, perdendo terreno".

Consolidação chega aos pulverizados, saúde e educação

Setores como educação e saúde apresentam um excesso de jogadores, parte deles mal gerenciados", diz o professor associado da FDC (Fundação Dom Cabral), Paulo Vicente.

"Em meio a uma crise, quem tem dinheiro compra quem não tem", afirma. Para o especialista, porém, é difícil fazer uma avaliação adequada do quanto vale o outro lado. "Nem tudo é assimilado durante uma due diligence na companhia alvo", lembra.

Em 2020, a Ânima comprou a FMU e a Anhembi Morumbi da Laureate, multinacional americana que deixou o país. Na disputa pela operação, também estava a Ser Educacional, que desistiu do seu direito de igualar propostas concorrentes, levando apenas dois ativos por R$ 180 milhões: o Centro Universitário dos Guararapes e a Faculdade Internacional da Paraíba.

Apesar da maior visibilidade de outras marcas da Laureate, a Ser escolheu a dedo os dois ativos adquiridos, por serem marcas relevantes em regiões estratégicas e apresentarem um bom preço.

Segundo Jânyo Diniz, presidente da Ser, a aquisição de uma companhia com quase o dobro de tamanho da sua não seria vantajosa em um momento em que aulas presenciais no ensino superior não têm data para voltar e que a economia "está sofrendo bastante e que pode continuar sofrendo por mais alguns anos".

"Poderíamos fazer uma aquisição muito cara e grande, que deixaria o nosso foco total no processo de integração, ou faríamos aquisições menores, voltadas ao que esperamos em termos de crescimento, colocando todos os nossos esforços nos produtos digitais, com potencial gigantesco", afirma Jânyo.

"Optamos pela segunda opção, que está se mostrando uma decisão acertada."

Na última segunda (31), a Ser anunciou a aquisição da Fael (Faculdade Educacional da Lapa), que oferece cursos superiores 100% online, por R$ 280 milhões.

O grupo planeja mais aquisições para fortalecer e ampliar a presença em regiões em que não é tão atuante, bem como em cursos de saúde, que concentram quase a metade dos alunos da Ser. Outro foco são EdTechs, empresas de tecnologia para educação —em 2020, a Ser comprou a Beduka.

Para Jânyo, fusões e aquisições em educação em tempos de crise são importantes para a sobrevivência do setor, que sofre com queda nas matrículas e alta inadimplência.

"O mercado já vinha em uma tendência de consolidação grande e esse momento vai aumentar mais a concentração", diz. "O ensino a distância, para ser viável economicamente, precisa de escala muito grande, pois ele tem um custo baixo [para o aluno] e um investimento pesado em conteúdo, em tecnologia e na marca."

Na opinião de Betânia Tanure, os setores de saúde e educação estão entre os mais agitados nas próximas operações de fusão e aquisição. "São setores que demoram mais tempo para se consolidar e atingir uma gestão mais sofisticada", diz.

Em fevereiro, os grupos Hapvida e NotreDame anunciaram fusão. Na empresa combinada, os acionistas da Hapvida passarão a deter 53,6% do capital social enquanto os da Intermédica terão 46,4%.

O mercado financeiro reagiu com otimismo, com a expectativa de nascer uma gigante capaz de transformar o setor de saúde. A nova operadora soma 84 hospitais, 280 clínicas e 257 unidades de diagnóstico, além de 8,4 milhões de vidas em sua carteira de clientes.

Enquanto a Hapvida tem foco no Norte e Nordeste, a Notre Dame se destaca no Sul e Sudeste —apenas Minas Gerais é o mercado em comum mais significativo para as duas. Para alguns analistas, as empresas são "complementarmente perfeitas".

À frente da nova empresa, os dois líderes vão dividir o comando: Irlau Machado Filho, diretor presidente da Notre Dame, e Jorge Pinheiro, diretor presidente da Hapvida. Resta torcer para o final feliz.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.