Caos logístico da pandemia expõe os riscos do modelo global de estoques enxutos

Falta de insumos causada por interrupções na produção põe em xeque sistema just in time combinado às cadeias de suprimento internacionais

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Peter S. Goodman Niraj Chokshi
Londres e Nova York | The New York Times

Na história de como o mundo moderno foi construído, a Toyota se destaca como pioneira de um avanço monumental na eficiência industrial. A montadora japonesa foi a primeira a adotar o método de produção “just in time”, sob o qual componentes são entregues no momento em que se tornam necessários, o que minimiza a necessidade de tê-los em estoque.

Nas últimas cinco décadas, essa abordagem cativou empresas de todo o mundo em setores que vão bem além do automobilístico. Da moda ao processamento de alimentos, passando por produtos farmacêuticos, companhias adotaram o “just in time” para se manterem ágeis, o que permite que se adaptem às demandas mutáveis do mercado e minimizem seus custos.

Mas os eventos dos últimos 12 meses puseram em questão os méritos de reduzir os estoques ao mínimo e redespertaram a preocupação de que alguns setores talvez tenham muito ido longe, o que os deixa vulneráveis.

Prateleiras vazias em uma loja Target, em Dallas - Nitashia Johnson - 25.jun.2020/The New York Times

À medida que a pandemia prejudicava as operações fabris e semeava o caos nos transportes, muitas economias começaram a sofrer escassez de ampla variedade de bens —de eletrônicos a roupas.
Em um momento de extrema desordem na economia mundial, o “just in time” estava atrasado.

“É uma cadeia de suprimento caída em desordem”, disse Willy Shih, especialista em comércio internacional na Escola de Administração de Empresas de Harvard. “Em uma corrida para chegar ao menor custo, os riscos terminaram concentrados.”

A manifestação mais proeminente dessa dependência excessiva quanto aos métodos “just in time” surgiu exatamente no setor em que eles foram inventados: montadoras se viram paralisadas por uma escassez de chips —componentes vitais para os automóveis, produzidos principalmente na Ásia. Sem chips suficientes à disposição, fábricas de automóveis da Índia aos EUA e ao Brasil se viram forçadas a suspender a operação de suas linhas de montagem.

Mas a amplitude e a persistência da escassez revelam até que ponto o conceito de “just in time” veio a dominar a vida comercial. Isso ajuda a explicar por que a Nike e outras marcas de produtos de vestuário enfrentam dificuldades para manter o varejo abastecido. É um dos motivos para que construtoras estejam encontrando dificuldades para adquirir tintas e produtos de vedação. E foi um dos principais fatores para a trágica escassez de equipamento pessoal de proteção, no começo da pandemia, que deixou os trabalhadores médicos de linha de frente desprovidos dos recursos necessários.

O “just in time” representou uma verdadeira revolução no mundo dos negócios. Ao manterem os estoques em um mínimo, grandes varejistas puderam usar porção maior do espaço em suas lojas para exibir produtos. O “just in time” também permitiu que fabricantes personalizassem seus produtos. E as técnicas enxutas de produção reduziram significativamente os custos e permitiram que as empresas realizassem transições rápidas para a produção de novos modelos.

Mas a escassez desperta questões sobre a possibilidade de que algumas empresas tenham sido agressivas demais na busca de economias por meio do corte de estoques, o que pode tê-las deixado despreparadas para os momentos em que problemas inevitavelmente surgem.

Caos nos mares

A escassez de diversos produtos na economia mundial deriva de fatores que vão além dos estoques magros. A expansão da Covid-19 tirou do trabalho estivadores e caminhoneiros, impedindo a descarga e a distribuição de bens feitos em fábricas da Ásia e despachados de navio para a América do Norte e a Europa.

A pandemia desacelerou as operações das serrarias, causando uma escassez de madeira que retardou a construção de casas nos Estados Unidos.

Tempestades de inverno que causaram o fechamento de fábricas de petroquímicos no golfo do México resultaram na falta de produtos essenciais.

Algumas companhias sofreram exposição especialmente forte a forças como essas, porque já estavam no limite quando a crise começou.

E muitas empresas combinaram o emprego de técnicas “just in time” à dependência de fornecedores em países de custo salarial baixo, como a China e a Índia, o que torna qualquer perturbação no transporte marítimo mundial um problema.

Isso amplifica os danos causados quando dificuldades ocasionais aparecem —como quando um navio cargueiro encalhou no canal de Suez, fechando a principal via de transporte entre a Ásia e a Europa.

'O efeito cascata afeta tudo'

Em Conshohocken, Pensilvânia, Andrew Romano está literalmente esperando o navio chegar. Ele é vice-presidente de vendas da Van Horn, Metz & Co., que adquire produtos químicos de fornecedores de todo o mundo e os revende a fábricas que produzem tinta, corantes e outros produtos.

Em períodos normais, a companhia registra atrasos no atendimento de 1% dos pedidos de seus clientes. Mas, em uma manhã recente, ela teve de deixar 10% dos pedidos que tinha em carteira sem resposta porque estava aguardando a chegada de suprimentos.

A companhia não conseguiu obter volume suficiente de uma resina especializada que vende a grupos industriais que fabricam materiais de construção. O fornecedor americano da resina não recebeu um elemento essencial para a produção, que adquire de uma fábrica de produtos petroquímicos na China.

“É um efeito cascata que afeta tudo”, disse Romano. “Uma completa bagunça.”

Não era necessária uma pandemia para revelar os riscos da combinação entre os métodos “just in time” e as cadeias de suprimento internacionais. Especialistas vêm alertando sobre eles há décadas.

Em 1999, um terremoto abalou Taiwan, paralisando a fabricação de chips. O terremoto e o tsunami que devastaram o Japão em 2011 fecharam fábricas e impediram a partida de navios, gerando escassez de autopeças e chips. Inundações na Tailândia, naquele ano, dizimaram a produção de discos rígidos.

Cada um desses desastres gerou discussões sobre a necessidade de as companhias ampliarem os estoques e diversificarem os fornecedores.

E as multinacionais continuaram a fazer tudo igual.

Os mesmos consultores que promoveram as virtudes dos estoques enxutos agora falam sobre a necessidade de ter cadeias de suprimento resilientes —a nova palavra de ordem.

Expandir armazéns pode não bastar como solução, disse Richard Lebovitz, presidente da consultoria LeanDNA. As linhas de produtos são cada vez mais personalizadas. “Prever que estoque deve ser mantido está se tornado uma tarefa cada vez mais difícil.”

Em última análise, as empresas devem manter e ampliar sua dependência dos métodos de produção enxutos pelo simples motivo de que eles geram lucros.

“A questão é se vamos deixar de caçar o custo baixo como único critério de julgamento nos negócios”, disse Shih, de Harvard. “É algo que vejo com ceticismo. O consumidor não quer pagar por resiliência quando não está em crise.”

Tradução de Paulo Migliacci

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