Fartura não é desleixo com comida, diz chef-pesquisador em resposta a Guedes

Na quinta (17), ministro comparara prato do brasileiro ao do europeu, que passou por guerras

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São Paulo

Na quinta-feira (17), o ministro Paulo Guedes (Economia) defendeu o encadeamento de doações das sobras produzidas pelos “excessos” da classe média brasileira à mesa com políticas sociais, durante o Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento, promovido pela Abras (Associação Brasileira de Supermercados).

Para o ministro, “nós fazemos almoços onde às vezes há uma sobra enorme” e o que não é comido “poderia alimentar pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados”. Na ocasião, Guedes comparou o tamanho do prato nacional com o do europeu, “que já passou por duas guerras mundiais”.

“De fato, o brasileiro tem essa cultura da fartura à mesa”, diz Max Jaques, chef-pesquisador do Instituto Brasil a Gosto. “Mas isso não significa que a gente seja desleixado com a nossa comida, que é o que parece que o ministro insinua.”

Jaques diz que o brasileiro tem essa relação com a fartura à mesa porque ela significa algo socialmente. Entre os fatores que contribuem para a criação dessa identidade, estão desde a colonização ibérica nos primeiros séculos da história do país à persistente desigualdade social. “É claro que a gente vai desejar a fartura.”

Walter Belik, professor-titular aposentado da Unicamp de Economia Agrícola e diretor-adjunto do Instituto Fome Zero, explica que não há dados concretos sobre o desperdício de alimentos no país.

“O que temos são os dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, agência da ONU) que mostram que, de modo geral, há um desperdício de 30% no alimento disponível no planeta”, afirma.

Belik diz que as projeções relacionadas à América Latina —já que não há sequer uma amostra significativa para falar apenas sobre o Brasil— mostram que esse número está mais concentrado na perda, que acontece de forma involuntária. “Essa perda pode ser causada por processos de produção atrasados, problemas no transporte e na conservação do produto.”

Para ele, o desperdício na casa das pessoas, se existir mesmo, é muito pequeno.

“Basta constatar que o Brasil é um país de 210 milhões de habitantes, boa parte de classe baixa. E pobre não desperdiça comida.”

Um relatório da ONU de 2019 estima que 930 milhões de toneladas de alimentos, ou 17% do total de alimentos disponíveis para consumidores tenha ido para o lixo em 2019. A pesquisa foi feita em 54 países e mostrou que a maior parte do descarte é feita em residências: 11%.

Apesar de ser um número pequeno, Jaques pondera que a relação do brasileiro com o alimento pode melhorar, principalmente se houver uma recuperação do conhecimento dos ingredientes, de como usá-los melhor e de forma integral. “Precisamos aprender a desejar e a usar as nossas coisas, em vez só de Nutella e leite Ninho”, diz.

Comparar o tamanho da refeição de um brasileiro à de um europeu é complicado porque o jeito de comer é diferente, explica Jaques.

“Quando você vai comer na Itália, por exemplo, há o primeiro prato, o segundo prato, a massa. Isso varia regionalmente. São outras práticas alimentares”, diz​.

Em sua fala, o ministro Paulo Guedes também sugeriu que as sobras do dia em um restaurante pudesse ser doada para pessoas em situação de vulnerabilidade. “Muito melhor do que deixar estragar essa comida toda”, disse.

Mas Walter Belik lembra que a doação de comida preparada é proibida pela vigilância sanitária. Ele diz que, para que exista uma mudança nesse cenário, deveria haver fiscalização. “Não é algo que pode ser mudado do dia para a noite.”

“Digamos que um restaurante em Santo Amaro [zona sul de São Paulo] queira doar comida que vai ser consumida na zona leste. Como essa comida será transportada? Como ela vai chegar a quem precisa? Vai fazer mais mal do que bem.”

Belik diz ainda que está acontecendo um desmonte da política pública que permitiu que o Brasil saísse do Mapa da Fome, em 2014. Projeções feitas neste ano apontam que quase 10% da população esteja subalimentada.

“Essa reformulação do Bolsa Família, por exemplo. Antes, o programa f azia transferência de renda com condicionalidades. Esse controle se perdeu.”

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