Descrição de chapéu Folha ESG sustentabilidade

Pandemia gera R$ 7 bilhões em doações e muda investimento social privado

Apoio a políticas públicas de saúde, geração de renda e igualdade supera visão filantrópica dos anos 1990

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

As implicações econômicas para as camadas mais vulneráveis da população provocadas pela pandemia e o estímulo a ações de combate ao coronavírus levaram o setor privado a destinar R$ 7 bilhões para o enfrentamento à crise, segundo números do Monitor de Doações da Covid-19 da ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos).

Nunca uma causa havia arrecadado tamanho volume de dinheiro no país, segundo o diretor-executivo da ABCR, João Paulo Vergueiro.

“Quando analisamos as emergências, não se encontra qualquer indício de volume tão grande quanto o arrecadado na pandemia”, diz Vergueiro. “É o maior movimento brasileiro de solidariedade para uma única causa”, afirma.

Os valores doados para o combate à crise sanitária e seus efeitos econômicos equivalem a mais da metade dos R$ 13,7 bilhões que os brasileiros destinam por ano em donativos para todas as causas, segundo a pesquisa Doação Brasil de 2015, a mais recente divulgada pelo Idis (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social).

O investimento social privado durante a pandemia, apesar de sem precedentes, é bem inferior ao dispêndio do setor público. Somente a versão de 2021 do auxílio emergencial do governo federal –cujo valor por família varia de R$ 150 a R$ 375, com média de R$ 250, e é considerado insuficiente– requisitou R$ 44 bilhões dos cofres públicos.

Os números de doações do Brasil também parecem tímidos se comparados aos mais de R$ 2,3 trilhões arrecadados nos Estados Unidos em 2021, segundo relatório do Giving USA.

Mesmo assim, o tamanho da resposta da sociedade civil brasileira à tragédia humanitária levou o Brasil à 54º posição no ranking global de solidariedade​ no ano passado, 20 posições acima da sua colocação média nos últimos 10 anos, de acordo com o World Giving Index 2021, índice da organização britânica CAF (Charities Aid Foundation) que mede o engajamento em filantropia em 114 países.

Para entidades ligadas à filantropia, mais importante do que o aumento do interesse em caridade é a forma como isso está ocorrendo: 26% dos brasileiros doaram dinheiro para alguma organização, o melhor percentual em cinco anos, segundo o Idis, representante da CAF no Brasil.

O aumento das doações em dinheiro para organizações, associado ao fato de que a participação das empresas supera a de pessoas físicas, contrariando a tradição do país, mostra que o empresariado, além de doar, se preocupa com o melhor aproveitamento desses recursos, uma vez que passam a ser direcionados para apoiar instituições do terceiro setor e do poder público.

“As corporações costumavam destinar recursos apenas para seus próprios institutos ou projetos, mas agora elas querem ajudar quem realmente tem experiência em tentar resolver o problema”, diz Vergueiro, da ABCR.

Quando o novo coronavírus desembarcou no país, o empreendedor social Edu Lyra já era reconhecido por mobilizar o meio empresarial para prestar apoio à população de baixa renda. Mas foi após o início da crise que o trabalho da ONG criada por ele há dez anos, a Gerando Falcões, atingiu números inéditos.

A campanha Corona no Paredão Fome Não já colocou comida na mesa de 983 mil moradores de comunidades carentes com a arrecadação de R$ 59 milhões entre 99 mil doadores e está entre as dez principais campanhas registradas pelo monitor da ABCR.

No topo do ranking de doadores da campanha estão pessoas jurídicas, com destaque para a XP Inc., com uma contribuição de R$ 1,1 milhão, além das empresas Accenture, Dasa, Mills Solaris, Grupo DPSP e Tracbel, cada qual com donativos acima de R$ 500 mil.

Próximo de alcançar a meta de arrecadar R$ 65 milhões, Lyra enxerga na pandemia um marco para a mudança na compreensão do mundo corporativo sobre o seu papel na construção de uma agenda de combate à desigualdade.

“O que mudou foi fundamentalmente o nível de consciência social das empresas. Houve a conscientização sobre o quão profundo é o problema e que é preciso criar uma agenda estratégica de Brasil tendo como protagonista a iniciativa privada, até por conta do seu poderio econômico”, diz Lyra.

“Não existem empresas vitoriosas em uma sociedade fracassada.”

A ideia de que é preciso ir além da caridade e aprofundar a participação empresarial no apoio a políticas públicas norteia o principal projeto privado de enfrentamento da crise, o Todos pela Saúde, iniciativa que contou com a doação de R$ 1 bilhão do Itaú-Unibanco e formou uma aliança de especialistas de diversos setores para gerir esse recurso.

O banco é o maior doador do país para ações de enfrentamento à pandemia, com um total de R$ 1,25 bilhão, o que representa 18% do total registrado no painel da ABCR.

Além das ações pontuais de informação e fornecimento de equipamentos de proteção, o Todos pela Saúde investiu na melhoria e ampliação de hospitais, fábricas de vacinas e pesquisas epidemiológicas.

“A gente tinha uma cultura de investimento social privado que era da década de 1990, com um olhar ainda filantrópico, que aos poucos migrou para frentes sociais mais estruturantes, como cultura e educação”, diz a diretora de relações institucionais e sustentabilidade do Itaú-Unibanco, Luciana Nicola.

“Agora a gente começa a entender que não é suficiente ter apenas a atuação pontual, mas a união de sociedade civil ao poder público para que a mudança seja perene e continue avançando.”

Além das contribuições que o Todos pela Saúde fez ao SUS (Sistema Único de Saúde), como os equipamentos doados a hospitais, o projeto prevê deixar como legado a construção de um centro de estudos para identificação de doenças virais com potencial para gerar novas pandemias.

“A preocupação é contribuir para que não aconteça mais, por isso estamos criando um instituto com objetivo de estruturar uma central pública para estudar novos vírus”, diz Nicola.

Especialistas esperam que a preocupação que as empresas tiveram com a comunidade durante a pandemia se reflitam também em relação ao seu público interno.

É com foco também na relação entre patrões e empregados que o Pacto Global das Nações Unidas, principal iniciativa mundial voluntária de empresas para o crescimento do desenvolvimento e da cidadania, prevê lançar ainda neste ano um conjunto de compromissos com a sociedade brasileira, com metas para inclusão em programas de saúde mental, participação de mulheres e negros em cargos de liderança e ampliação do número de trabalhadores com remuneração digna.

“Estamos vivendo esse momento de aumento da importância das práticas ambientais, sociais e de governança, mas agora não é só isso. Nós começamos a entrar nos temas e as empresas estão sendo cobradas pela saúde mental dos seus trabalhadores, pela remuneração, segurança”, afirma Carlo Pereira, secretário-executivo da Rede Brasil do Pacto Global.

"Estamos criando um observatório dos compromissos empresariais no Brasil e vamos mostrar para o mercado aquela empresa que lança compromissos para 2050 e não coloca nada em prática”, diz Pereira.

“Não adianta ter meta para 2050 e não apresentar nada para 2022.”

Entre os compromissos a serem propostos pelo Pacto Global no Brasil, o movimento por salários dignos está entre os mais desafiadores.

Para Clemente Ganz Lúcio, ex-diretor do Dieese e assessor do Fórum das Centrais Sindicais, a valorização salarial é uma tendência ainda restrita a um grupo pequeno de corporações transnacionais pressionadas pela sociedade e por alguns governantes de países centrais, sobretudo após a eleição do presidente Joe Biden nos Estados Unidos, que buscam resposta à instabilidade social gerada pela ampliação da desigualdade.

No Brasil, essa guinada enfrenta obstáculos ainda maiores. “A primeira questão é o contingente de trabalhadores informais ou inseridos no mercado formal de forma precarizada”, diz Lúcio. “A segunda é que essa mesma desigualdade está presente na estrutura produtiva porque há uma brutal diferença de produtividade entre as pequenas e as grandes empresas.”

Para Lúcio, o investimento prioritário do setor privado deve ter foco no apoio a políticas de formação profissional e de apoio a pequenos negócios. “No primeiro momento pode gerar prejuízo, mas no médio prazo gera desenvolvimento, bons empregos, bons salários, reduz desigualdades e a economia cresce”, defende.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.