Uma nova era econômica: a inflação está voltando para ficar?

Série do Financial Times examina se o extraordinário estímulo pós-crise vai conduzir a uma alta de preços

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Chris Giles
Londres | Financial Times

A reunião do mais importante comitê econômico do Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, em dezembro foi rotineira. Os participantes concordaram em que a economia tinha capacidade de lidar com o nível crescente de gastos “sem qualquer pressão forte de alta sobre os preços”.

Ainda que os preços de algumas poucas matérias-primas estivessem subindo acentuadamente, “os produtos industrializados não foram sujeitados a pressões de alta de custos generalizadas”, então o comitê concluiu que a inflação generalizada não era uma preocupação séria.

A reunião do Comitê Federal de Open Market aconteceu em 15 de dezembro de 1964, apenas duas semanas antes do início de um período de 17 anos que o Fed hoje define como A Grande Inflação.

Os pontos de inflexão nas tendências de preços tendem a ocorrer exatamente nos momentos em que as autoridades e a opinião dos especialistas descartam que existam riscos. O consenso atual é de que os aumento de preços nos mercados de commodities e bens industriais têm explicações claras relacionadas à pandemia, e que os riscos de um ressurgimento da inflação mundial continuam a ser remotos.

O presidente do Fed, Jerome Powell - Kevin Lamarque - 3.MAR.20/Reuters

Três décadas após as autoridades das economias avançadas conseguirem suprimir a besta, elas continuam confiantes em que detêm o controle. O mantra do momento é resumido por Andrew Bailey, o presidente do banco da Inglaterra, que gosta de dizer que está acompanhando a inflação “com extremo cuidado”, mas sem preocupação.

Essa é a opinião dominante, mas ela vem perdendo apoio. Um desertor notável, recente, é Roger Bootle, autor do livro “The Death of Inflation” (A morte da inflação, em tradução livre), que percebeu o declínio no ritmo de aumento de preços quando ele estava por surgir, na metade da década de 1990.

Bootle está preocupado, agora. “Os mercados financeiros terão de se acostumar ao retorno de questões perturbadoras que, até recentemente, pareciam mortas há muito tempo”, ele escreveu em maio.

Lubrificando a economia

Os dirigentes de bancos centrais não tiveram de lidar com problemas de inflação ao longo de suas carreiras. Depois de chegar a uma média de 10% anuais nas décadas de 1970 e 1980, a inflação mundial caiu a uma média próxima dos 5% nos países ricos da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), na década de 1990, e para 3% na década de 2000 e 2% na década de 2010.

A questão hoje é determinar se aposição que eles mantêm é ou não complacente. O mundo está entrando em uma nova era inflacionária?

Embora muitos domicílios acreditem que a definição de estabilidade de preços seja a ausência de inflação, os economistas e as autoridades econômicas favorecem um aumento de preços anual ameno de em torno de 2%. Isso reduz o risco de que uma crise econômica deflagre uma espiral deflacionária, com queda do consumo, preços e salários, elevação da carga real de dívidas e danos adicionais consequentes para o consumo.

Holger Schmieding, economista chefe do Berenberg Bank, explica que um pouquinho de inflação também serve para lubrificar as engrenagens da economia, permitindo que os setores em declínio fiquem para trás graciosamente.

“Uma inflação mais alta relaxa os ajustes econômicos ao criar mais escopo para mudanças nos salários relativos sem a necessidade de uma queda aberta dos salários nos setores pressionados”, diz.

Na maioria das economias avançadas —Estados Unidos, zona do euro e Japão— os bancos centrais ficaram abaixo de suas metas de inflação de em torno de 2% anuais, apesar de terem cortado as taxas de juros para zero e de terem criado trilhões de dólares, euros e ienes, bombeados para as economias por meio da compra de títulos de dívida pública.

Uma alta modesta na inflação, portanto, seria bem recebida pelos bancos centrais, que em geral têm a tarefa de obter estabilidade de preços.

Décadas de 1950 e 1960: inflação variável

E até este ano, a maior preocupação econômica com relação aos preços era o risco de que os países estivessem se tornando japoneses e em breve passassem a emular os 30 anos de luta de Tóquio contra uma deflação amena.

A dificuldade de manter a inflação alta o bastante era tamanha que alguns economistas começaram até a questionar a doutrina de Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, que em 2002 argumentou que, “sob um sistema de papel-moeda, um governo determinado sempre pode gerar gastos mais altos, e com eles inflação positiva”.

Mas essa visão de mundo foi virada de cabeça para baixo em 2021. Um novo programa de captação e gastos ilimitados adotado pelo governo Biden; a poupança forçada durante a crise do coronavírus, que deu aos domicílios poder de consumo adicional; gargalos no suprimento de bens; e uma reversão de pressões duradouras de baixa sobre os salários e preços mundiais redespertaram o medo de uma inflação excessiva.

Ninguém está falando de hiperinflação como a vista na Alemanha da República de Weimar em 1923 ou na América Latina da década de 1980, ou mesmo dos 10% de taxa mundial de inflação dos anos 1970, mas de uma alta gradual para níveis persistentes de aumentos generalizados de preços que não vemos há uma geração.

Quando o índice de inflação anualizada dos Estados Unidos saltou para 4,2%, em abril, os mercados financeiros sofreram um abalo. A nova preocupação sobre um retorno da inflação não resulta apenas de forças econômicas imediatas, mas reflete também mudanças subjacentes de prazo mais longo na estrutura da economia mundial.

O estímulo econômico agressivo está sendo adotado no exato momento em que a economia mundial sente o impacto do envelhecimento de populações e do amadurecimento da transição chinesa iniciada 40 anos atrás.

Década de 1970: a era dos choques do petróleo

Além disso, a História também nos conta que nem os políticos, nem os economistas e nem os dirigentes de bancos centrais são capazes de garantir que o mundo manterá uma inflação baixa e estável. Como demonstra a experiência do Fed na década de 1960, pontos de inflexão na inflação chegam com pouco aviso. Diferentemente dos Estados Unidos, onde não existia medo de inflação depois da Segunda Guerra Mundial, a preocupação sobre a inflação “estava sempre presente” depois de desvalorizações da libra e de altas nos preços dos produtos importados, no Reino Unido, durante os anos de pleno emprego das décadas de 1950 e 1960, de acordo com Nick Crafts, professor de história econômica na Universidade de Sussex.

Mas ela só decolou realmente nos anos 1970, depois do primeiro choque do petróleo da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) e de uma virada na política governamental, da austeridade para “um programa de estímulo imensamente excessivo, que conduziu a economia para além de qualquer estimativa razoável quanto a um nível sustentável de desemprego”, acrescenta Crafts.

Pesquisas de Luca Benati, professor na Universidade de Berna, indicam que a fé do planeta na capacidade dos dirigentes de bancos centrais para domar quaisquer episódios semelhantes é provavelmente um equívoco.

A pressão inflacionária era tão forte no Reino Unido na década de 1970, ele constatou, que, quando decidiu reencenar a história por meio de múltiplas simulações que presumiam um banco central independente encarregado de controlar os preços, os resultados demonstraram que as forças inflacionárias teriam sido mais poderosas do que qualquer ação provável do Banco da Inglaterra orientado por um Comitê de Política Monetária independente.

Na década de 1970, isso teria impacto “apenas limitado” em termos de conter os aumentos de preços, que chegaram a um patamar anualizado de 26,9% no país em 1975.

Década de 1980: os bancos centrais assumem o controle

De acordo com Karen Ward, principal estrategista para o mercado europeu da JPMorgan Asset Management, isso significa que a doutrina Bernanke continua válida e não deve ser esquecida. “Sempre presumimos que melhoras estruturais no ‘supply side’, como avanços de tecnologia e a globalização, são tão grandes que jamais poderíamos sufocá-las por meio da demanda, mas talvez continue a ser possível sufocar o suprimento por meio da demanda, e assim, em última análise, gerar inflação”, ela diz.

Estímulo excessivo

É exatamente esse medo que está elevando as expectativas quanto à taxa de inflação nos Estados Unidos e Europa, no momento.

Além da recuperação nos preços da energia para níveis anteriores aos da Covid, também existe uma escassez de chips, produtos de madeira, muitos metais, e até de queijo. Essas são as causas imediatas da inflação mais alta, mas os mercados financeiros se preocupam que a causa última possa ser o estímulo fiscal e monetário relacionado à pandemia, que conduziu a uma recuperação econômica muito mais rápida, nas economias avançadas, do que se imaginava possível no final de 2020.

Com a política econômica pisando muito mais mais no acelerador do que em qualquer momento da história recente, os gastos podem exceder a capacidade das economias para fornecer bens e serviços, especialmente se a crise do coronavírus e as medidas de apoio dos governos fizerem com que as pessoas se disponham menos a encontrar empregos, criando escassez de mão de obra e pressão significativa sobre as empresas para que elas aumentem salários.

O desequilíbrio potencial entre a procura em disparada e a oferta mais restrita é tão grande, especialmente nos Estados Unidos, que alguns defensores de ideias de centro-esquerda dizem que os sinais de alerta já estão piscando.

Larry Summers, secretário do Tesouro no governo Clinton, acredita que a política monetária é frouxa demais, e vem criticando repetidamente a “complacência perigosa” das atuais autoridades econômicas com relação à inflação, nas últimas semanas.

Embora a Casa Branca tenha reagido, declarando que “uma economia forte depende de uma fundação sólida de investimento público, e que investimentos nos trabalhadores, famílias e comunidades se pagarão por muitas décadas”, mesmo a atual secretária do Tesouro, Janet Yellen, reconheceu a possível necessidade de uma alta nas taxas de juros, “para garantir que nossa economia não se superaqueça”.

Pressões demográficas

A virada política surgiu em um momento no qual os economistas em geral aceitam que algumas das grandes forças globais que seguravam as altas de preços tenham enfraquecido seriamente.

Nas décadas de 1990 e 2000, a globalização gerou uma imensa transferência na produção de bens, das economias de altos salários para a China e o leste da Europa, acelerando um declínio no poder dos trabalhadores das economias avançadas para forçar seus empregadores a pagar salários mais altos, o que manteve os preços baixos.

Mas essas forças estão em um ponto de inflexão, de acordo com Charles Goodhart, ex-economista chefe do Banco da Inglaterra e autor do livro “The Great Demographic Reversal”. A longa expansão no tamanho das forças de trabalho terminou, e em muitas economias a população está a ponto de cair pela primeira vez em décadas.

Goodhart diz que a existência de um número menor de trabalhadores novos se integrando à força mundial de trabalho, em um período de queda da mão de obra nas economias avançadas por conta do envelhecimento da população, intensificará as pressões sobre as companhias por salários mais altos, o que aumentará cada vez mais a pressão inflacionária subjacente.

A mudança na pressão demográfica já existe há uma década e está se intensificando, diz Goodhart. Ele não está seguro quanto a uma data para o retorno da inflação, dizendo que o planeta deve ver um aumento da pressão inflacionária dentro de cinco anos, e que “estamos seguros de que ela terá acontecido até 2030”.

2021: Biden promete ação

Essa era a situação antes que a Covid-19 atacasse. Agora, ele diz que as pressões, somadas a políticas de estímulo mais vigorosas e às restrições que a pandemia gerou na oferta, parecem ter antecipado o momento de retorno da inflação.

“Tendemos a pensar que, por causa de restrições de oferta, especialmente, 2021 será mais inflacionário do que os dirigentes de bancos centrais imaginavam originalmente, e a inflação durará mais em 2022 e 2023 porque existirá uma confluência entre o acúmulo de grandes balanços monetários e uma expansão fiscal continuada”, afirmou.

Mencionando exemplos específicos de preços que ele projeta que devam subir, Goodhart aponta que a demanda ampliada por férias, no Reino Unido, pode elevar os preços de locação de imóveis para férias, as diárias dos hotéis e até o preço do sorvete, no verão deste ano.

“A pessoa teria de ser santa para não aumentar os preços”, diz.

Pressões demográficas não são algo que seja possível reverter rapidamente, e tampouco as forças da globalizacão, ele argumenta, que bateram em retirada depois de se tornarem politicamente impopulares em muitas economias avançadas.

Novamente, isso é mais agudo nos Estados Unidos, onde economistas como Adam Posen, presidente do Instituto Peterson de Economia Internacional, instam os americanos a “abraçar a mudança econômica e não a nostalgia”, na produção nacional, especialmente a da indústria, como forma de melhorar padrões de vida e promover crescimento não inflacionário.

Até agora, porém, embora as expectativas de inflação dos mercados financeiros tenham crescido acentuadamente em 2021, as autoridades econômicas estão mantendo a calma.

No Fed, há cada vez mais discussão de que em algum momento os atuais integrantes do comitê que determina as taxas de juros terão de pensar sobre reduzir o o ritmo de criação de dinheiro e de compra de títulos do governo. Mas a opinião é a de que a inflação está retornando a níveis mais normais, e o banco central americano prometeu manter uma política altamente acomodatícia até que uma recuperação mais inclusiva seja promovida.

Essa é a abordagem certa, diz Laurence Boone, economista-chefe da OCDE em Paris, uma opinião que se enquadra às atitudes semelhantes dos bancos centrais de todo o mundo.

“É cedo demais para acionar o alarme quanto à inflação”, ela diz. “Isso não significa que seja desnecessário observar o que está acontecendo, e estamos vendo fricções com a reabertura da oferta e procura depois da crise, mas a política certa é aliviar as tensões no ‘supply side’ e não buscar ações dos bancos centrais [para debelar as pressões inflacionárias]”.

Na maioria das economias, há uma ociosidade considerável no mercado de trabalho, ela acrescenta, e as grandes pressões demográficas podem ser aliviadas significativamente por aposentadorias postergadas, enquanto novas partes da Ásia e da África ficariam deliciadas por se integrar à economia mundial, como a China fez.

A visão de Boone ainda representa a opinião de consenso entre os economistas e há considerável confiança, dentro dos bancos centrais, em que qualquer alta da inflação este ano será temporária e fácil de controlar sem que eles precisem recorrer a apertos significativos da política monetária.

Mas, pela primeira vez em muitas décadas, existe a possibilidade de que um ponto de inflexão significativo tenha chegado, e de que os aumentos de preços não sejam apenas temporários, mas sim algo mais difícil de controlar.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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