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Ações contra a Globo marcaram disputa pelo comando do Cade

Antigos chefes do órgão de defesa da concorrência trocarão de cargos entre si

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Brasília

Investigações de supostas práticas anticompetitivas da TV Globo marcaram uma disputa interna de poder no governo em troca dos dois mais cobiçados cargos no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), a presidência e a superintendência-geral (SG).

Órgão que defende a livre concorrência no país, o Cade é composto por duas áreas. A primeira é a SG, porta de entrada para todos os processos e denúncias, onde os casos são instruídos.

A segunda área é o conselho, formado por sete integrantes que julgam e definem punições aos casos enviados pela SG. Denúncias de cartel, por exemplo, passam pelo Cade.

No órgão, os indicados têm mandato de quatro anos. A presidência do colegiado ficou vaga no final de junho, quando venceu o mandato de Alexandre Barreto.
Vista geral da redação da TV Globo na no bairro do Brooklin, São Paulo (SP). - Fabiano Accorsi/Folhapress-2010-11-19

Desta vez, o governo optou por fazer uma troca. Alexandre Cordeiro de Macedo, que comandava a SG, assumiu a presidência na segunda-feira (12). Barreto foi indicado para a chefia da SG e ainda aguarda a sabatina do Senado.

Com a escolha dos nomes, a tendência é que os processos contra a Globo não prosperem, segundo pessoas que acompanham os casos, apesar dos ataques do governo Jair Bolsonaro à emissora.

No primeiro caso, no início de dezembro de 2020, a emissora foi impedida de exigir exclusividade em contratos de publicidade ao vincular as agências por meio da concessão de grandes descontos. A proibição, naquele momento, foi imposta por Macedo, então superintendente-geral e confirmada posteriormente pelo conselho.

Em nota, a Globo afirma que não pratica exclusividade em contratos. "Nossos planos de incentivo não têm exclusividade e o Cade nunca afirmou que tinham. Importante destacar que planos de incentivo são práticas comuns e disseminadas há décadas, amplamente praticadas por diferentes players do mercado, como reconhecido pelo Cade, inclusive pelas grandes plataformas digitais, que já concentram significativa participação no mercado publicitário, e por grandes empresas jornalísticas, como a Folha de S.Paulo", disse a empresa.

Congressistas afirmam que a medida foi uma promessa do senador Ciro Nogueira (PP-PI) a Bolsonaro, em troca da nomeação de Macedo para o cargo de presidente do Cade. O senador não quis comentar. "Não merece resposta", disse à Folha.

Macedo afirmou que sua indicação sempre foi técnica. Ele foi conselheiro do Cade e superintendente-geral da autarquia durante dois mandatos. Possui dupla graduação, em direito e em economia, e é doutorando em direito econômico pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Sobre a decisão em relação à Globo, ele não quis comentar. Técnicos disseram que o processo foi aberto por causa de evidências de práticas anticompetitivas supostamente cometidas pela emissora. Segundo eles, o provável desfecho será um acordo com a TV.

A escolha de Barreto para a SG sofreu atropelos. Antes de chefiar o Cade, ele tinha sido chefe de gabinete do ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) Bruno Dantas, que o governo considera um aliado de Renan Calheiros (MDB-AL), hoje relator da CPI da Covid —foco de desgaste político para Bolsonaro.

No entanto, as relações de Barreto com o governo se solidificaram por si só.

Barreto ganhou a simpatia do Planalto ao apresentar soluções para a crise dos combustíveis, ao fechar um acordo com a Petrobras para a venda de refinarias. Isso colocou fim ao monopólio da estatal, o que deveria baratear principalmente o diesel, uma demanda dos caminhoneiros, base de Bolsonaro.

Ele também caiu nas graças do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em razão do arranjo definido pelo Cade que levou à abertura do mercado de gás natural.

Também se tornou próximo do então ministro da Justiça, André Mendonça, e do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, depois de apaziguar um conflito histórico entre Cade e autoridade monetária na análise de casos do setor financeiro.

Sua indicação era dada como certa até que a conselheira do Cade Paula Farani Azevêdo entrasse em campo para disputar a SG.

Filha do ex-presidente da OMC (Organização Mundial de Comércio), o diplomata Roberto Azevêdo, e da diplomata Maria Nazareth Farani Azevedo, Paula teve reuniões com o ministro-chefe da Casa Civil, general Luiz Eduardo Ramos, com a ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, e com o próprio Bolsonaro.

Assessores presidenciais afirmaram que a conselheira saiu da sala de Bolsonaro com indicação acertada, retirando Barreto da corrida.

Segundo relatos, na conversa com o presidente, Paula teria se colocado contrariamente à Globo em um novo caso que ela denunciou à Procuradoria-Geral do Cade logo depois do encontro com Bolsonaro.

A representação se refere a um suposto abuso da emissora na antecipação de renovação de contratos de exclusividade de artistas, o que, segundo a conselheira, seria uma forma de impedir gigantes como a Netflix de lançarem novelas nacionais competindo com a Globo.

A medida foi vista no mercado como uma vacina porque Paula havia votado a favor da Globo. Ela foi contra a proibição cautelar da exclusividade com agências de publicidade.

Na ocasião, Bolsonaro afirmou ter a intenção de enviar ao Congresso um projeto de lei pondo fim à prática de "bônus de venda", como é conhecido essa forma de pagamento no mercado publicitário.

O presidente, que sempre fez críticas à Globo, avaliava que esses descontos teriam forjado a liderança da emissora ao concentrar a maior fatia da publicidade, prejudicando concorrentes diretos como Record e SBT, ambas aliadas do governo.

Na denúncia dos contratos dos artistas, Paula se baseou em reportagens de sites especializados que noticiaram o interesse da Netflix em dar início à produção de novelas no Brasil.

À Folha ela disse que os contratos de exclusividade da emissora seriam uma forma de barrar a entrada de outros concorrentes no mercado audiovisual. Segundo Paula, funcionaria de forma similar a uma siderúrgica que compra mais do que o necessário em insumos para reduzir o crescimento de concorrentes.

A argumentação da conselheira foi questionada por técnicos do Cade ouvidos sob anonimato pela Folha.

Segundo eles, a Globo sempre estabeleceu contratos de exclusividade com as estrelas de seu elenco. E, no momento, está em um movimento de pôr fim à maioria dos acordos, mantendo um grupo restrito de atores exclusivos.

Além disso, ainda segundo os técnicos, a Netflix já vinha produzindo conteúdo nacional sem que os contratos da Globo fossem um problema para a atividade no país. Algumas das séries, como Cidade Invisível, chegaram ao topo da audiência até mesmo em outros países.

À reportagem a conselheira afirmou que, mesmo assim, não é possível saber se a Globo pratica "abuso de poder dominante". Segundo ela, essa evidência já tinha sido apontada desde as investigações da prática de bônus de venda pelo Cade.

A tentativa da conselheira de assumir a SG levou a pressão do grupo de apoio de Barreto sobre o Planalto , e o governo recuou. Agora, Barreto aguarda a sabatina para assumir a superintendência.


O XERIFE DO LIVRE MERCADO

O Cade é o órgão de defesa da concorrência. Julga casos de abusos de poder de mercado, como cartéis, e compra e venda de companhias

Qual é a estrutura?
O Cade é formado pela Superintendência-Geral (SG), balcão de entrada para o registro de operações de fusões e aquisições ou denúncias de infrações cometidas por empresas nos mais diversos setores. O julgamento desses casos é feito pelo conselho, um colegiado com 7 integrantes, incluindo o presidente —que responde pela autarquia. Existe ainda Procuradoria Especializada, braço da AGU (Advocacia-Geral da União) dentro do órgão, que é acionada sempre que há dúvidas jurídicas

​Como funciona?
A área técnica, a chamada SG, instrui os casos —sejam atos de concentração (fusões e aquisições) ou investigações por infrações contra a ordem econômica, e envia esses processos instruídos para o conselho já com sua recomendação para o desfecho do caso para o conselho. Essa recomendação pode ou não ser acatada, dependendo do conselheiro relator do caso. Os casos mais simples podem ser decididos unilateralmente pela SG. No entanto, caso haja alguma reclamação referente à decisão pelas partes envolvidas ou terceiros, um conselheiro pode reabrir o caso e levá-lo a julgamento pelo conselho

Todo caso termina em condenação ou aprovação?
Nem sempre. É possível que uma das partes apresente uma proposta de acordo, quando cometeu infração contra a ordem econômica. Em casos de fusões ou aquisições, o conselho costuma aprovar com restrições, indicando quais medidas precisam ser tomadas para evitar elevada concentração de mercado. Se as recomendações não são atendidas, há multas e, em casos mais graves, até o cancelamento da operação

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