Carros são vendidos nos EUA antes mesmo de chegar à concessionária

Escassez de chips está impedindo que as montadoras de automóveis produzam carros suficientes para satisfazer a demanda crescente

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Neal E. Boudette
Nova York | The New York Times

Rick Ricart está esperando cerca de 40 utilitários esportivos Kia Telluride, na concessionária de sua família em Columbus, Ohio, nas próximas três semanas. A maioria deles passará apenas algumas horas na loja.

“Estão todos vendidos”, disse Ricart. “Os compradores já assinaram os papéis, ou deixaram depósitos. O mercado está uma loucura, no momento”.

Nos showrooms dos Estados Unidos, os americanos estão comprando a maioria das marcas e modelos quase tão rápido quanto é possível fabricá-los ou revendê-los. O frenesi por veículos novos e usados está sendo alimentado por duas forças relacionadas: as montadoras estão enfrentando dificuldades para aumentar sua produção por conta da escassez de chips causada em boa parte pela pandemia. E uma forte recuperação econômica, taxas de juros baixas, poupanças acumuladas e pagamentos de estímulo do governo se combinaram para estimular a demanda.

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A escassez de semicondutores está impedindo montadoras de produzir carros suficientes para atender a demanda - Andrea Chronopoulos/The New York Times

Essa combinação dificultou o acesso a veículos, para as concessionárias e os compradores. Alguns vendedores estão entrando em contato com clientes antigos e fazendo ofertas de recompra de carros vendidos um ou dois anos atrás, porque a demanda por veículos usados é tão forte quanto, se não mais forte que, a demanda por carros novos. Os preços dos carros usados estão cerca de 45% mais altos do que no ano passado, de acordo com dados do governo publicados esta semana. Os preços de carros e caminhões novos estão cerca de 5% mais altos do que no ano passado.

Esses aumentos de preços alimentaram um debate em Washington sobre se as políticas do presidente Joe Biden, especialmente o American Rescue Plan, em valor de US$ 1,9 trilhão, que ele assinou em março, são responsáveis pela alta acentuada da inflação. O governo afirmou esta semana que os preços ao consumidor subiram em 5,4% na economia em geral, nos 12 meses até junho.

Legisladores republicanos argumentaram que a legislação de março está causando superaquecimento da economia e mencionam os aumentos de preços como motivo para se opor a uma nova expansão dos gastos do governo. Mas integrantes do governo Biden apontaram que a escassez temporária de suprimentos é a principal responsável pela alta nos preços dos carros e de outros produtos.

O estímulo do governo pode ter ajudado alguns consumidores, mas é difícil saber em que medida. Há diversas forças importantes em ação.

A escassez de chips, por exemplo, afeta montadoras de automóveis em todo o mundo e não se relaciona diretamente a políticas dos Estados Unidos. Dirigentes do setor apontam para a capacidade limitada de produção e semicondutores e desordens relacionadas à pandemia na oferta e procura como responsáveis pela escassez.

Para aproveitar ao máximo a oferta limitada de chips, a General Motors removeu temporariamente certos recursos de alguns modelos, como os sistemas de desligamento e reinício automático de motor quando o carro para em um semáforo. E a montadora francesa Peugeot substituiu os velocímetros digitais por modelos analógicos, em certos modelos.

As locadoras de automóveis, que venderam milhares de veículos durante a pandemia para sobreviver, estão no mercado agora para comprar carros e veículos comerciais leves. Elas querem tirar vantagem do boom de viagens que elevou as diárias de locação para até centenas de dólares, em alguns locais.

“O setor já tinha passado por greves e por escassez de materiais que nos deixaram com falta de estoque, mas eu jamais tinha visto algo assim”, disse Mark Scarpelli, dono de duas concessionárias Chevrolet em Chicago. “Nunca, nunca, nunca”.

As lojas dele normalmente têm entre 600 e 700 carros em estoque. Agora, esse total é de cerca de 50 veículos. Uma ou duas por vezes por semana, o caminhão chega da montadora trazendo de cinco a 10 carros. Eles desaparecem rapidamente da loja por conta da lista de espera com muitos nomes de clientes, disse Scarpelli.

Executivos do setor disseram que a última vez que a oferta e procura estiveram tão fora de sincronia aconteceu provavelmente depois do final da Segunda Guerra Mundial, quando as fábricas de carros americanas voltaram à produção de automóveis depois de anos produzindo tanques de guerra e aviões.

As concessionárias informam que virtualmente tudo está vendendo, de modelos de luxo e carros esporte com preços de mais de US$ 100 mil a carros usados básicos que muitos pais compram para seus filhos adolescentes.

Mesmo que o desemprego continue mais alto do que era antes da pandemia, muita gente tem dinheiro para gastar. Os pagamentos do governo ajudaram muita gente, mas grande número de americanos, impedidos de viajar em férias ou comer fora, economizou dinheiro. O financiamento de automóveis também está relativamente barato – pelo menos para as pessoas com bom crédito. Algumas montadoras, como a Toyota, que foi menos afetada pela escassez de chips do que alguns rivais, estão anunciando financiamento com juro zero para alguns modelos.

O negócio da família de Ricart inclui uma oficina especial que vende carros e picapes personalizados e modelos esportivos. “Nós tínhamos uma picape Shelby de US$ 125 mil na loja, e eu não acreditava que encontraríamos comprador”, ele recorda. “E foi vendida em um dia. Há muito dinheiro solto no mercado. As pessoas estão pagando o preço cheio, mesmo pelos modelos mais caros que oferecemos”.

Os compradores também estão se vendo forçados, em muitos casos, a aceitar veículos que não atendem às suas especificações, e a decidir rápido quando encontram um modelo próximo ao que desejam.

Gary Werle, aposentado de Lake Worth, Flórida, recentemente trocou um Buck Encore 2017 por uma versão 2021, atraído por recursos de segurança como sensores de ponto cego e frenagem automática. “Tenho 80 anos, e achei que seria bom ter essas coisas”, ele disse.

No final de maio, a concessionária ligou e Werle não hesitou. “Eu estava em uma festa, mas fui na hora buscar o carro”, ele disse. “Tinha ouvido falar da escassez, e não sabia se o carro ainda estaria lá no dia seguinte”.

As concessionárias estão vendendo menos unidades mas seus lucros estão muito mais altos. É uma grande mudança ante o segundo trimestre de 2020, quando a maioria das lojas teve de fechar por cerca de dois meses e precisou demitir pessoal para sobreviver.

“A forte demanda dos consumidores, acoplada à falta de oferta dos fabricantes, criou muito lucro para as lojas”, disse Alan Haig, presidente da consultoria automotiva Haig Partners.

Agora, as lojas tipicamente ditam o preço dos carros, usados ou novos. Carros novos tipicamente são vendidos ao preço de tabela do fabricante, ou, em alguns casos, por milhares de dólares a mais, no caso de modelos de alta procura. Pechinchar na compra de carros usados se tornou coisa do passado.

“No momento, ninguém negocia muito quanto a preços”, disse Wes Lutz, proprietário da Extreme Dodge, de Jackson, Michigan.

Alguns clientes se recusam a pagar preço cheio por carros novos e optam por aceitar modelos mais velhos. Isso aumenta a demanda por peças e serviços, um dos negócios que propiciam mais lucros às lojas de automóveis. Muitas delas ampliaram o horário de funcionamento de suas oficinas. Ricart disse que alguns de seus técnicos estão trabalhando jornadas de 10 a 12 horas diárias três ou quatro dias em seguida, e depois tiram folgas mais longas.

É claro que a escassez de carros vai acabar, mas não está claro quando.

Com o aumento do número de contágios e mortes pela Covid-19 no segundo trimestre de 2020, as montadoras de automóveis fecharam suas fábricas na América do Norte do fim de março à metade de maio. Porque as fábricas estavam paradas e a expectativa era de um retorno lento das vendas, elas reduziram suas encomendas de semicondutores, os pequenos cérebros que controlam motores, transmissões, telas de toque e muitos outros componentes dos automóveis e caminhões modernos.

Ao mesmo tempo, os consumidores confinados em suas casas começaram as comprar laptops, smartphones e consoles de videogames, o que elevou a demanda por chips da parte das empresas que produzem esse tipo de equipamento. Quando as montadoras de automóveis reativaram suas fábricas, havia menos chips disponíveis.

Muitas montadoras tiveram de paralisar suas fábricas por prazos de uma ou duas semanas no primeiro semestre de 2021. GM, Ford Motor e outros também recorreram a produzir veículos sem determinados componentes, e retê-los nas fábricas até que as peças chegassem. Em determinado momento, a GM tinha 20 mil veículos quase completos à espera de componentes eletrônicos. Eles começaram a ser despachados em junho.

A Ford foi mais prejudicada do que outras montadoras por conta de um incêndio nas instalações de um de seus fornecedores no Japão. No final de junho, a Ford tinha 162 mil veículos nos pátios de suas concessionárias, menos de metade do número que registrava três meses antes, e o equivalente a cerca de um quarto do estoque normal das concessionárias.

Este mês, a Ford está desacelerando a produção em diversas fábricas na América do Norte por conta da escassez de chips. A companhia anunciou que planeja adotar como foco a conclusão da montagem de veículos.

Ricart recentemente viajou em sua Harley-Davidson a Louisville, Kentucky, e viu os carros e utilitários esportivos à espera de componentes em uma fábrica da Ford. Ele disse ter visto “milhares de picapes paradas em áreas vazias, protegidas por cercas temporárias”.

Ele disse que esperava receber algumas dessas picapes em breve, porque a Ricart Ford só tinha 30 picapes F-150 em estoque. “Costumamos vender 200 delas por mês”, ele acrescentou.

Tradução de Paulo Migliacci

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