A promoção dos direitos da criança e do adolescente ainda não se consolidou completamente na vida política brasileira. Contudo, disso não deveriam decorrer expressões políticas que têm por meta se contrapor a pautas sociais, econômicas, culturais e jurídicas que promovem o interesse direto e imediato dessa tenra camada de nosso tecido social.
Embora isso venha se tornando lugar-comum (como exemplifica o ressurgimento, no Congresso Nacional, da proposta de revogação da “Lei da Palmada”), ainda causa estranheza a recente declaração do deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) que, vendo regressar ao Brasil a mais jovem medalhista olímpica da história, Rayssa Leal, não conseguiu elaborar nenhuma ideia positiva capaz de fazer avançar a árdua batalha legislativa e judicial travada em favor da proteção deste vulnerável grupo social ao qual pertence a nossa querida atleta.
Pelo contrário. Insuflado pela emoção da vitória olímpica que recolocou o Brasil nas partes mais nobres dos jornais e noticiários nacionais e internacionais (lugar há tempos não ocupado por nós), bradou o seguinte retrocesso em sua conta no Twitter: “As crianças brasileiras de 13 anos não podem trabalhar, mas a skatista Rayssa Leal ganhou a medalha de prata nas Olimpíadas... Ué! É pra pensar... Parabéns a nossa medalhista olímpica! E a revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente já”.
O deputado, defende, em verdade, a revisão do artigo 60 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), o qual proíbe “qualquer trabalho infantil a menores de quatorze anos de idade”.
Segundo ele, a medalha olímpica conquistada por Rayssa (de 13 anos de idade) seria reflexo e produto de seu trabalho como atleta profissional, o que comprovaria, na prática, não haver prejuízos em se autorizar o trabalho infantil de crianças de idade inferior a 14 anos.
O deputado ignora, com isso, o fato de que a prática de esportes por crianças, ainda que exercida em competições premiadas, não configura trabalho na acepção legal do termo, mas constitui fonte de saúde, educação e meio de aprendizado a partir do qual a criança interage com o mundo externo, desenvolve capacidades motoras fundamentais ao seu desenvolvimento psicossocial e estabelece relações positivas e primordiais para a adequada promoção de seus interesses sociais.
Tanto é assim que o artigo 4º do ECA estabelece o dever partilhado entre a família, o Estado e a sociedade de “assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes ao esporte [e] lazer [de crianças e adolescentes]”, colocando-as a salvo de qualquer medida ou prática que exponha a risco sua promoção —tal como o pretenso direito de pais de forçá-las a engajarem-se em relações de trabalho, que não fazem senão rebaixá-las à condição de fonte de renda e patrimônio de seus responsáveis.
Apenas em excepcionais circunstâncias (dispostas em lei e submetidas ao crivo judicial pela casuística) é dado a crianças participar de atividades remuneradas (o engajamento artístico é um bom exemplo disso). Isto decorre do latente conflito entre os direitos sociais de crianças (dentre os quais figura o direito ao esporte) e a pauta de reintrodução do trabalho infantil.
A proteção comunitária integral da criança engloba, a um só tempo, a promoção de atividades de lazer (como o skate) e o combate à inserção em atividades laborais, as quais furtam de crianças o direito de viver em um ambiente social harmônico, saudável e equilibrado, livre de condições desumanas que degradam sua qualidade de sujeitos de direito em prol da monetização de sua força humana.
É evidente que crianças que são forçadas a trabalhar (segundo o melhor julgamento de seus pais e tutores) não têm tempo, ânimo e condição material de se dedicar a atividades que efetivamente priorizem sua saúde e educação.
Por esse motivo, é incongruente utilizar o próprio esporte como pretexto (e salvo-conduto) para a defesa do retrógrado trabalho infantil, como se ambos fossem dois elos complementares que se atraíssem e se associassem na conjuntura social.
Propugnar que a legislação volte a permitir que crianças trabalhem implica readmitir, na vida social, os efeitos negativos extirpados pela protetiva ordem social estabelecida pela Constituição Federal de 1988.
O ordenamento jurídico assim o faz e assim deve continuar a fazer, porque criança não é (e nunca deverá voltar a ser) moeda de troca ou fonte de renda.
Entender diversamente implica retirar da máquina pública os contrapesos que freiam a mercantilização da criança no país, servindo de porta de entrada a tantas outras violações —de evasão escolar à exploração sexual.
O simples anseio de pretender rever o ECA, neste ponto, representa um retrocesso de pensamento abissal na luta pela efetiva promoção dos direitos das crianças e adolescentes. Os políticos que defendem esta bandeira deveriam saber disso —ou, ao menos, não deveriam se dar ao luxo de ignorar.
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