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Semicondutores: o dispendioso plano da Europa para chegar ao primeiro nível entre fabricantes de chips

União Europeia quer criar autonomia estratégica em um setor que enfrenta escassez, mas o risco é desperdiçar dinheiro público

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Sam Fleming Peggy Hollinger Ben Hall
Financial Times

O esplendor barroco de Versalhes, um monumento suntuoso ao poder da Europa, oferecia um pano de fundo resplandecente e adequado para uma discussão sobre o que pode ser o projeto industrial de alta tecnologia mais ambicioso, e caro, do continente.

O presidente francês Emmanuel Macron se reuniu com Pat Gelsinger, presidente-executivo da Intel, no palácio do século 17 nos arredores de Paris para uma conferência no mês passado, e havia um tópico fundamental no topo da agenda.

A União Europeia está buscando lugar na primeira divisão mundial da fabricação de semicondutores, e se propõe a desafiadora meta de dobrar sua fatia no mercado mundial de chips até 2030.

A Intel quer ocupar posição central nessas ambições, com uma proposta de construir uma nova fábrica de semicondutores de US$ 20 bilhões no continente.

A chanceler alemã, Angela Merkel, que já manifestou preocupação sobre a fabricação de chips e baterias na Europa - John Macdougall - 7.dez.18/AFP

O projeto vem sendo defendido em Bruxelas como o passo mais ambicioso em direção a uma agenda mais ampla de “autonomia estratégica” —um esforço para reduzir a vulnerabilidade do continente a perturbações nas cadeias de suprimento e riscos geopolíticos.

Para os dirigentes da União Europeia, a escassez de suprimento que prejudica a indústria de semicondutores no momento e dificulta a produção do setor automotivo, que é crítico para a União Europeia, só serve para sublinhar a necessidade de agir.

E o mesmo vale para os riscos de depender tão pesadamente da produção de semicondutores de Taiwan, se levarmos em conta os temores sobre as intenções chinesas quanto à ilha, e sua vulnerabilidade a terremotos.

Se economias como as da China, Coreia do Sul, Taiwan e Estados Unidos estão investindo mais para fortalecer seus setores de semicondutores, pergunta Thierry Breton, comissário da União Europeia para o mercado interno, “será que a Europa não deveria fazer o mesmo?”

A questão que a União Europeia encara ao se preparar para iniciar essa empreitada, no entanto, é se isso não vai significar o desperdício de grandes quantias de dinheiro público em busca de ambições geopolíticas que talvez não encontrem sustentação na lógica industrial e de mercado.

Embora a Europa tenha pontos fortes que lhe conferem vantagem sobre o restante do mundo, em certos quadrantes da cadeia de suprimentos, ela fica bem para trás da Ásia, especialmente quando o assunto é a produção de chips de ponta.

Mudar esse quadro, alertam, executivos, requererá anos de esforço e quantias vastas de dinheiro público —em um período no qual os governos da Ásia e dos Estados Unidos também estão despejando dezenas de bilhões de dólares em subsídios ao setor.

“Será muito, muito caro”, diz Peter Hanbury, sócio da consultoria Bain & Co. e especializado em tecnologia de semicondutores. “Vai demorar anos para que a Europa desenvolva o tipo de tecnologia de que os políticos estão falando”.

Diante dos gigantes da fabricação de chips —especialmente a Samsung, da Coreia do Sul, a TSMC, de Taiwan, e a Intel—, a Europa é peixe pequeno no setor, em termos relativos, com fatia de mercado de menos de 10%. Por exemplo, a TSMC está construindo uma fábrica para produzir chips de três nanômetros, que devem ser até 15% mais rápidos que os chips de cinco nanômetros e usam até 30% menos energia.

Em contraste, a Europa conta com poucas instalações de fabricação, conhecidas como “fabs”, que produzam nodos menores que 22 nanômetros. A produção da Intel na Irlanda é uma exceção, por incluir chips de 14 nanômetros, e a companhia pretende produzir chips de sete nanômetros no local.

O setor europeu de chips em geral nem tenta competir com os grandes concorrentes asiáticos e americanos, na fabricação dos chips mais avançados, usados em computadores, celulares e outros aparelhos de alta potência.

Em lugar disso, os líderes desse mercado na União Europeia, como a Infineon, da Alemanha, a NXP, da Holanda, e a franco-italiana STMicroelectronics, têm por foco o fornecimento de chips às indústrias automobilística, aeroespacial e de automação industrial, entre outras.

Os defensores do modelo atual argumentam que, tendo em conta a natureza mundial da cadeia de suprimentos de semicondutores, a Europa estava certa em se especializar em áreas nas quais já é forte, em lugar de buscar competir com rivais como a TSMC.

A companhia taiwanesa passou décadas montando sua posição de liderança mundial como maior fabricante terceirizada de chips, e planeja investimentos de capital da ordem de mais de US$ 100 bilhões só nos próximos três anos.

Eles mencionam as tentativas mal sucedidas da China de concorrer com os líderes mundiais do setor, argumentando que a União Europeia deveria se concentrar nas áreas em que é competente, em lugar de buscar promover tecnologias de ponta a um vasto custo em dinheiro público.

No entanto, em Bruxelas, os proponentes de um renascimento dos semicondutores na União Europeia afirmam que esse tipo de raciocínio é complacente, e acusam os fabricantes que dominam a produção continental no momento de ter investido menos do que deveriam, por muitos anos.

A Comissão Europeia anunciou esta semana uma “aliança de semicondutores”, uma parceria entre o setor privado e o setor público para promover a comercialização de novas tecnologias na área.

“Existe um imperativo geoestratégico de reequilibrar a cadeia de suprimento de semicondutores”, diz um dirigente da União Europeia. “Haverá um grande mercado para semicondutores avançados de dois nanômetros, por exemplo nos carros autoguiados, e a Europa precisa ser parte disso. Se considerarmos quanto tempo demora construir uma fábrica dessas, é preciso começar agora”.

Segurança do suprimento

Breton, antigo executivo de telecomunicações, buscou se posicionar na vanguarda desse esforço. O comissário francês argumenta que a União Europeia já conta com um “ecossistema” estabelecido de pesquisa avançada e produção de semicondutores, para servir como plataforma às suas novas aspirações.

No mês passado, ele buscou sublinhar esse ponto em uma visita à Imec, uma central de pesquisa de nanotecnologia nas imediações de Bruxelas, usada pelas maiores empresas de tecnologia —entre as quais TSMC, Intel e Samsung— para a produção de protótipos de chips.

Inspecionando uma sala limpa de 5,2 mil metros quadrados que conta com os mais avançados equipamentos mundiais de produção de chips, incluindo produtos da ASML, a companhia holandesa que lidera o segmento, Breton questionou executivos sobre tecnologias de chips de próxima geração, para semicondutores de menos de dois nanômetros.

“Quero deixar bem claro. A Europa está no assento do piloto, no que tange à tecnologia avançada de semicondutores”, disse Breton.

Em entrevista ao Financial Times na semana passada, Breton argumentou que a União Europeia agora tem uma janela única, com o lançamento do plano de recuperação econômica Next Generation EU, de 800 bilhões de euros, para alocar investimento público dos países membros ao setor de produção de chips.

Fazer com que a estratégia funcione requer comprometimento de dinheiro público, “pela próxima década ou décadas”, ele reconheceu, argumentando que a União Europeia, graças a especialistas como a ASML e a Imec, já tinha uma plataforma formidável sobre a qual construir.

“As tensões geopolíticas provavelmente serão duradouras”, ele disse, acrescentando que a Europa precisa “garantir que tenhamos a capacidade de assegurar a segurança do suprimento para nossas empresas e nossos concidadãos”.

O esforço da União Europeia, em paralelo com a aliança de semicondutores, envolverá países membros unidos em dos chamados Projetos Importantes de Interesse Comum Europeu, que têm por objetivo facilitar a liberação de assistência estatal para grandes projetos transnacionais.

Mas a despeito da força que o setor já tem, pelo menos de acordo com Breton, a estratégia dependerá pesadamente de adquirir conhecimentos especializados estrangeiros, fornecidos mais provavelmente pela americana Intel, ao menos inicialmente, dada a capacidade limitada da Europa para a produção de chips avançados.

“A questão é determinar se a Europa terá capacidade de avançar para a produção mais avançada por conta própria, o que é um caminho arriscado e dispendioso, ou se poderemos pegar carona na estratégia da Intel”, diz um funcionário do governo italiano. “Que papel desejamos desempenhar?

Apoiamos a Intel dentro da estrutura existente de assistência estatal, ou criamos uma parceria e um ecossistema europeu mais completo para os semicondutores?”

Design ou produção?

A oferta da Intel causou uma corrida entre países europeus para atrair Gelsinger com ofertas de locais para construção da fábrica, bem como assistência de pesquisa e desenvolvimento, forças de trabalho habilitadas e grandes subsídios governamentais. A Intel está em busca de apoio público em valor de muitos bilhões de euros para sua nova fábrica na Europa.

Embora não tenha revelado números, Greg Slater, um executivo especializado em questões regulatórias na companhia, diz que a União Europeia tem uma “desvantagem de custo” da ordem de 30% a 40% comparada à produção na Ásia, e que boa parte da diferença se relaciona ao nível de apoio governamental.

As somas envolvidas terão de ser imensas, a julgar pelos programas de outros países. A Coreia do Sul está oferecendo incentivos para propelir um programa de investimento de nove anos e US$ 450 bilhões pelos fabricantes de chips, enquanto os Estados Unidos estão falando de mais de US$ 500 bilhões para sua indústria de semicondutores.

Além disso, a Intel precisará de um terreno com 405 hectares dotado de infraestrutura desenvolvida, e capaz de abrigar até oito “fabs” de chips. A empresa está estudando países como a Alemanha, Holanda, França e Bélgica como locais potenciais para a fábrica.

A Intel dificilmente deve começar a produzir chips de dois nanômetros em curto prazo, porque ainda não dominou essa tecnologia, embora sua produção de chips de 10 nanômetros já esteja bem avançada.

A companhia vem enfrentando dificuldades para concorrer com rivais asiáticos, e terceirizou parte de sua produção de processadores para a TSMC. Slater disse que a produção de chips de dois nanômetros “viria mais tarde”, a depender de exatamente quando a primeira fábrica entrar em operação.

Nem todos os executivos se deixam convencer pelas ambições que a Europa vem acalentando recentemente sobre a fabricação de chips —e especialmente pelo ruído político e simbolismo em torno de produzir os chips mais avançados, de dois nanômetros.

Eles argumentam que a Comissão Europeia não aprendeu com o fracasso de uma campanha anterior, lançada em 2013, para ampliar a fatia de mercado da Europa.

Fabricantes europeus como as montadoras de automóveis simplesmente não precisam de tantos chips avançados assim, diz Jens Drews, executivo da GlobalFoundries, uma fabricante de chips controlada por Abu Dhabi e fabricante de alguns dos chips mais avançados da Europa, em sua fábrica na Saxônia, Alemanha.

“Minha estimativa é de que 90% das necessidades de chips europeias até o final desta década serão de chips de mais de 10 nanômetros”, diz Drews. “Minha forte recomendação é deixar de lado a caça aos nanômetros e estudar quais são nossas necessidades industriais e com que tecnologias elas serão mais bem atendidas. O nanômetro é só uma dimensão, e o setor é muito mais complexo do que isso, agora. O foco exclusivo em nanômetros é um dos pontos fracos mais importantes da estratégia da Comissão Europeia”.

Jan-Peter Kleinhans, diretor de projeto de tecnologia e geopolítica do Stiftung Neue Verantwortung, um instituto de pesquisa de Berlim, diz que a União Europeia está errada em se concentrar na fabricação de chips, em lugar de no design, que é a parte do processo de produção que envolve mais valor adicionado.

Embora semicondutores sejam um pré-requisito para tecnologias emergentes como a inteligência artificial, computação quântica e veículos autoguiados, são principalmente as companhias dos Estados Unidos e Taiwan que projetam e produzem os “chipsets” para essas funções específicas.

Não existe um sistema europeu de “celular em um chip” do tipo usado nos smartphones. Não existe acelerador de inteligência artificial (a parte do chip usada para aprendizado por máquina) projetado na União Europeia, pelo menos não com fatia de mercado substancial. Não existe processador de propósitos gerais, chip gráfico ou processador para data center criados na Europa, aponta Kleinhans.

“Antes que a União Europeia se preocupe com o local de produção desses chips, deveríamos nos preocupar com quem os projeta —porque certamente não somos nós”, ele diz.

Por isso, Kleinhans questiona por que a União Europeia desejaria gastar bilhões de euro em subsídios para “se tornar a fabricante terceirizada para o resto do planeta”, se concentrando na parte da cadeia de valor dos semicondutores que tem as barreiras mais altas para entrada, a maior necessidade de subsídios e, ele argumenta, a menor perspectiva de sucesso.

Coordenação com os EUA

Alguns executivos concordam em que a União Europeia ainda precisa decidir aquilo que está buscando realizar: ter maior resiliência em suas cadeias de suprimento; soberania tecnológica e proteção da segurança nacional; ou competitividade.

“Que problema está sendo resolvido, se tivermos uma fábrica em nosso quintal?”, pergunta o presidente-executivo de uma importante companhia europeia de semicondutores. “O pior que pode acontecer é um grande investimento em fabricação, sob a crença de que isso compensará os riscos na cadeia de suprimento. E aí você descobre que não resolveu o problema, e só o mudou de lugar”.

Chad Bown, especialista em comércio internacional no Instituto Peterson de Economia Internacional, concorda em que a União Europeia precisa ser mais clara sobre que problema está tentando resolver.

Se o objetivo é trazer maior diversidade às cadeias mundiais de suprimento, o processo vem ocorrendo atualmente “de modo muito desorganizado, com governos de todo o mundo bombeando subsídios para o setor”, ele adverte.

Uma prioridade essencial, diz Bown, deveria ser obter uma coordenação muito melhor com os Estados Unidos quanto a pesquisa e desenvolvimento, e quanto ao regime de controle de exportações do país.

A União Europeia foi apanhada de surpresa pelas medidas do governo Trump contra o setor chinês de semicondutores. O objetivo agora deveria ser um alinhamento muito melhor, ele diz, “em lugar de permitir que o governo americano dite o que constitui uma ameaça de segurança nacional”.

Funcionários da União Europeia dizem que isso tem de fato posição central em seu diálogo com o governo Biden, apontando para a conferência de cúpula entre os Estados Unidos e a União Europeia no mês passado em Bruxelas, na qual surgiu acordo para a formação de uma parceria na área com o objetivo de “reequilibrar as cadeias mundiais de suprimento de semicondutores”.

Eles argumentam que a Europa precisa ter uma participação digna de sua estatura no setor mundial de chips, dada a demanda crescente por poder de processamento, em uma gama cada vez maior de aparelhos.

Peter Wennink, presidente-executivo da ASML, da Holanda, fabricante das mais avançadas máquinas de litografia usadas para a produção de chips, concorda em que muito mais capacidade será necessária em todo o mundo, nos 10 próximos anos, e que tanto os Estados Unidos quanto a União Europeia estão despertando para a situação “negligenciada” de seus setores de semicondutores.

“Se você estudar as projeções para o setor, seu movimento vai facilmente dobrar nesta década, ou seja, estamos falando de um negócio de trilhões de dólares”, ele diz. “Que esse negócio só produza em três partes do mundo - Taiwan, Coreia e China —seria meio tolo”.

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