União gastou R$ 7 bilhões com extra em salários de superelite do funcionalismo em duas décadas

Estudo mostra excedentes em vencimentos do Judiciário, Legislativo e Executivo; órgãos negam pagamentos indevidos

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Brasília

Ao longo de quase duas décadas, a União gastou ao menos R$ 7 bilhões com salários acima do recebido por um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal). Os beneficiados integram uma superlite do funcionalismo.​

Estudo de José Teles, pesquisador associado do Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), e Wellington Nunes, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), calculou o montante extra pago de 2000 a 2018 nos três Poderes.

O levantamento foi feito com base na Rais (Relação Anual de Informações Sociais​) de 2018. Os pesquisadores corrigiram os vencimentos pelo INPC de dezembro de 2019.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), com o ministro Paulo Guedes (Economia), defende a reforma administrativa sem atingir direitos adquiridos
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), com o ministro Paulo Guedes (Economia), defende a reforma administrativa sem atingir direitos adquiridos - Pedro Ladeira - 25.jun.21/Folhapress

O estudo considerou apenas vínculos cuja média de remunerações mensais, no ano analisado, foi superior à média mensal do subsídio mais alto recebido por um ministro do STF em 2018 —R$ 40,5 mil—, já deflacionado.

Hoje, o teto constitucional —salário de um membro da corte— é de R$ 39,3 mil. Porém, um ministro pode receber R$ 43,3 mil em razão do abono permanência, pago quando se alcançam requisitos para aposentadoria e segue na ativa.

O montante ilustra disparidades enquanto o Congresso debate uma reforma administrativa para combater privilégios. As mudanças nas regras do funcionalismo estão em tramitação na Câmara.

Na semana passada, os deputados aprovaram urgência para a votação do projeto do extrateto, uma etapa anterior à reforma administrativa. A expectativa é que o texto seja analisado na terça-feira (13).

Os resultados constam do artigo “A Elite Salarial do Funcionalismo Público Federal: Sugestões para uma Reforma Administrativa mais Eficiente”.

O texto foi publicado no Cadernos Gestão Pública e Cidadania, edição de maio a agosto deste ano, da FGV, sem a estimativa total. A pedido da Folha, a cifra bilionária foi obtida com Teles e Nunes.

Eles localizaram supersalários no Judiciário, Ministério Público, Congresso, TCU (Tribunal de Contas da União) e Itamaraty. Essa superelite está fora das mudanças propostas pelo governo para enxugar a máquina pública.

Procurados, Justiça do Trabalho, Justiça Federal, PGR (Procuradoria-Geral da República), Senado e Câmara negaram realizar pagamentos acima do teto.

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) afirmou não possuir dados consolidados dos TREs (Tribunais Regionais Eleitorais). O Ministério da Economia disse não ter tido acesso ao estudo, mas afirmou que, em termos gerais, a remuneração dos servidores públicos federais civis do Poder Executivo está condicionada ao teto constitucional.

Para obter a média, o valor anual recebido foi dividido por 13, e não 12 meses, em razão da gratificação natalina.

"Sob a narrativa de combater privilégios, a PEC [proposta de emenda à Constituição] 32/2020 propõe ajustes profundos para a grande maioria das carreiras do serviço público nacional, mas exclui aquelas nas quais os privilégios se concentram", escreveram Teles e Nunes.

De acordo com eles, 2006 foi o ano que registrou o maior custo médio acima do salário de um ministro do STF. Foram pagos R$ 828,5 milhões excedentes para um total de 9.225 vínculos.

A partir de 2010 houve uma redução brusca no custo médio dos supersalários. Em 2018, 1.248 vínculos receberam R$ 234,8 milhões acima da média de um integrante da corte.

No entanto, segundo os pesquisadores, a tendência de queda tem relação com a redução dos vínculos, e não com uma diminuição das remunerações.

"Isso quer dizer que há menor número de vínculos que recebem acima do teto, mas essas pessoas que continuam recebendo salários acima do teto continuam recebendo salários muito altos", afirmou Nunes à Folha.

O estudo não contemplou servidores de estados, municípios e Forças Armadas. Isso significa que o impacto fiscal dos supersalários pode ser maior do que o sugerido pelo levantamento, de acordo com os pesquisadores.

Nos órgãos do Judiciário e Ministério Público, a maior parte dos supersalários se encontrava em 2018 no MPU, com 40,1%, e nos TRTs (Tribunais Regionais do Trabalho), com 38,3%.

No Poder Legislativo, o TCU respondia por 70% do extrateto em 2018, enquanto no Executivo o campeão em supersalários era o Ministério das Relações Exteriores, com 87,4%.

No caso do Itamaraty, Nunes reconheceu que o efeito cambial tem de ser levado em consideração.

"Boa parte desses funcionários recebe em moeda estrangeira para custear despesas em moeda estrangeira. Quando a gente faz a conversão, sobretudo em tempo de desvalorização cambial, tem impacto significativo", ponderou.

Até 2015, a quantidade de vínculos civis ativos com supersalários no Legislativo e no Judiciário superava em larga escala a do Executivo. Porém, em 2018 os três Poderes se equipararam com proporção abaixo de 0,2% —uma elite da elite.

Os pesquisadores foram questionados sobre eventual descumprimento do chamado abate-teto. O instrumento é o desconto aplicado sobre a remuneração para que o valor fique dentro do limite constitucional.

​"Não tem uma resposta clara. No Atlas do Estado, isso é algo que já discutimos em reuniões e não se sabe por que não funciona, mas é um fato que o abate-teto funciona mais no Executivo do que nos demais Poderes", disse Teles.

O estudo não considerou os chamados penduricalhos, que ficam fora do teto. Da Rais foram extraídos remunerações-base, adicionais, suplementações, gratificações, bônus por produtividade, licenças-prêmio, férias, décimo terceiro, entre outros.

Na avaliação de Teles e Nunes, a reforma administrativa deveria enfrentar os supersalários se a intenção for realmente combater privilégios.

"Justamente os servidores que têm salários mais elevados são aqueles que serão classificados como carreiras típicas de Estado [com estabilidade] e que, portanto, não estarão incluídos na PEC, na reforma, enquanto a burocracia, a base da prestação de serviços, será atingida pela reforma e não está nessa elite que recebe supersalários", afirmou Teles. ​

Para contornar esse problema, segundo os pesquisadores, o Congresso tem de aprovar o projeto de lei que trata do extrateto.

O projeto regulamenta o dispositivo da Constituição que estipula o limite remuneratório, além de especificar pagamentos que não se sujeitam a ele.

Entre esses pagamentos estão o ressarcimento de despesa médica e odontológica, adicional de férias de um terço da remuneração e indenização decorrente do uso de veículo próprio em serviço, em valor de até 7% do limite remuneratório.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), estabeleceu como meta votar o texto antes do recesso parlamentar. Segundo ele, os supersalários são uma condicionante para a votação da reforma administrativa.

"Os supersalários não podem, na visão de quase a unanimidade dos líderes, permanecer sem uma análise do projeto, aprovado no Senado tem um tempo", disse.

A relatoria do projeto do extrateto está a cargo do deputado Rubens Bueno (Cidadania-PR). Assessores do partido se reuniram na semana passada com representantes da senadora Kátia Abreu (PP-TO), relatora do texto no Senado, para fazer ajustes finais.

A Constituição é muito clara de que existe um teto. Mas isso não acontece na prática por causa de todos os penduricalhos, e o fato é que tem muita remuneração que fura o teto. A regra constitucional não funciona, e a lei tem de se aplicar a todos os Poderes e todos os entes

Adriana Ventura (Novo-SP)

deputada federal

"Queremos entregar essa resposta, que, sem dúvida alguma, vai ser fundamental para fazermos a reforma administrativa no país, combatendo os principais abusos para poder ter, inclusive, autoridade moral de debater os desafios que têm as necessidades de readequação dos custos do poder público", disse o líder do Cidadania na Câmara, Alex Manente (SP).

Para a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), é preciso "colocar o dedo na ferida" e discutir o assunto tido como impopular.

"A Constituição é muito clara de que existe um teto", disse. "Mas isso não acontece na prática por causa de todos os penduricalhos, e o fato é que tem muita remuneração que fura o teto. A regra constitucional não funciona, e a lei tem de se aplicar a todos os Poderes e todos os entes."

Em meio a essa discussão, uma regra editada em maio pelo governo Jair Bolsonaro autorizou uma parcela de servidores a receber mais do que o teto. Entre os beneficiados estão o próprio presidente e ministros.

A portaria inovou ao criar uma espécie de teto duplo. Ela estabeleceu que o limite remuneratório incidirá separadamente para cada um dos vínculos no caso de aposentados e militares inativos que retornarem à ativa no serviço público.

Com isso, a medida significa que o teto total para esses servidores passa a ser de R$ 78.586,64 por mês.

"Essa portaria do governo Bolsonaro recente autorizando que servidores militares acumulem com funções civis vai aumentar significativamente o número de salários extrateto na administração pública", afirmou Nunes, um dos autores do estudo sobre supersalários e pesquisador da UFPR.

"O discurso é de combate a privilégios, mas as medidas práticas que são tomadas de fato contrariam totalmente esse discurso. Em alguns casos, assume-se a ideia de que esses privilégios são justificados."

Judiciário, Câmara e Senado negam pagamento de salários acima do teto

As Justiças Federal e do Trabalho, a PGR (Procuradoria-Geral da República), a Câmara dos Deputados e o Senado negaram que tenham efetuado pagamento de salários acima do teto constitucional.

Segundo o CSJT (Conselho Superior da Justiça do Trabalho), em nota, "o que pode explicar a compreensão de que haveria extrapolação do teto seria a situação pontual que pode ocorrer do magistrado receber em determinado período valores a título de férias antecipadas ou atrasadas, com o adicional de um terço correspondente".

Entre os benefícios que extrapolariam o teto, segundo o órgão, também estão "recebimento de abono permanência, ou mesmo eventual quitação de passivo de exercício anterior".

"Nesses casos, não se pode somar as referidas vantagens às que devem ser consideradas para efeito de teto", disse o CSJT.

Em nota, o CJF (Conselho da Justiça Federal) negou irregularidades nos vencimentos de magistrados.

"O Conselho da Justiça Federal informa que todos os pagamentos da Justiça Federal obedecem ao artigo 37, inciso XI, da Constituição Federal, e à Resolução CNJ n. 13/2006, que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magistratura", afirmou.

A Câmara, por meio de nota, disse que "cumpre integralmente as determinações legais relativas ao teto salarial dos seus servidores". "Portanto, não procede a informação citada em sua mensagem segundo a qual a instituição teria ultrapassado limites neste quesito em 2018", afirmou.

Já o Senado afirmou que não "efetua pagamentos em dissonância aos preceitos legais". "Assim, não são realizados pagamentos acima do teto constitucional estabelecido para a esfera pública", disse, em nota.

"Ressaltamos que há parcelas remuneratórias que não são consideradas para fins de aplicação do teto constitucional, como, por exemplo, a gratificação natalina, as férias, o auxílio alimentação ou o abono permanência", afirmou.

A PGR afirmou que "todos os pagamentos feitos pelo Ministério Público Federal a título remuneratório a membros e servidores seguem critérios e previsões legais ou atendem a decisões judiciais".

"Eventuais pagamentos que extrapolem o teto são decorrentes da natureza dessas verbas", disse.

O TCU (Tribunal de Contas da União) afirmou que o tema era tratado em processo de relatoria do ministro Jorge Oliveira relativo à fiscalização contínua na folha de pagamento dos entes federais, e encaminhou o acórdão.

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) disse não possuir os dados consolidados dos TREs (Tribunais Regionais Eleitorais).

Já o Ministério da Economia disse não ter como comentar os dados por não ter tido acesso ao estudo.

Afirmou ainda que a remuneração dos servidores públicos federais civis do Poder Executivo está condicionada ao teto constitucional, "excetuadas as hipóteses de parcelas remuneratórias e acumulações lícitas que não são consideradas pela sistemática de cálculo do abate-teto".

"Portanto, se a remuneração acumulada com vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza exceder esse limite, aplica-se o abate-teto, exceto no caso de ocorrência de alguma das situações excepcionais mencionadas no parágrafo anterior ou da existência de decisão judicial", afirmou.

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