As empresas se tornaram mais confiáveis que os governos, diz presidente da P&G

Filial da multinacional americana lança Aceleradora Social no país e já soma R$ 60 milhões em doação de produtos na pandemia

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Brasília

Juliana Azevedo tem boas lembranças da infância. O avô Manuel, um dos fundadores do time paulista da Portuguesa, a levava ao estádio para assistir aos jogos. No fim dos anos 70, começo dos anos 80, era a única menina na arquibancada. “Eu adoro futebol até hoje”, diz a presidente da filial brasileira da Procter & Gamble.

“Mal sabia meu avô que aquela experiência de igualdade e empoderamento iria me ajudar mais tarde. No curso de Engenharia da Poli [Escola Politécnica da USP], eu só conseguia ter algum diálogo com meus colegas porque sempre sabia o que estava acontecendo no futebol”, brinca a executiva.

A líder de uma das maiores fabricantes de bens de consumo do país – dona de marcas de higiene pessoal e limpeza como Gillette, Pantene, Oral-B, Pampers, Always, Ariel e Downy – ainda continua uma exceção. Segundo pesquisa da consultoria Bain & Company e da rede social LinkedIn, apenas 3% dos presidentes das 250 maiores empresas brasileiras são mulheres.

Mulher branca, loira, de braços cruzados
Juliana Azevedo se sentiu sobrecarregada desde o início da pandemia. Yoga passou a fazer parte da rotina, assim como um cuidado maior com a alimentação. “Passei a ter uma consciência maior com a saúde, porque se você não está bem, não tem como cuidar dos outros”, diz ela. Esse “cuidar dos outros” inclui os funcionários do prédio onde mora. “Sempre pergunto se eles já se vacinaram, digo: nada de besteira, vacina boa é vacina no braço, ninguém vai virar jacaré”. - Bruno Santos/Folhapress

Na pandemia, Juliana precisou assumir novos papéis, como apoiar o ensino remoto do filho de 11 anos. “Digo que, antes da pandemia, meu trabalho era liderar uma empresa”, diz. “Mas aí foram surgindo vários pratinhos para serem equilibrados e a tensão aumentou”.

Na Procter, dona também de uma divisão farmacêutica –que vai desde o xarope Vick ao anti-inflamatório Alginac, passando pelo suplemento Cebion–, Juliana teve que lidar com uma dimensão desconhecida da área de saúde.

“Eu sou engenheira de produção e advogada tributarista”, diz ela. “Mas de repente passei a falar com médicos, laboratórios, para ter uma dimensão melhor da crise sanitária e seus desdobramentos para a equipe e os negócios. E ainda tenho que reimaginar o futuro, porque os planos mudaram”.

Mas a executiva de 45 anos faz questão de ressaltar que fala de um lugar privilegiado. “Estou em uma residência confortável, trabalho em um setor que navegou com mais tranquilidade na crise, e tenho ajuda para equilibrar os meus ‘pratinhos’”, diz.

“É bem diferente de quem tem que enfrentar a pandemia morando em um espaço de 20 metros quadrados com mais cinco ou seis pessoas. Isso sim é confinamento”, afirma ela, que vê as empresas ganhando um protagonismo social maior que o do poder público.

“Uma pesquisa da agência Edelman já apontou as empresas e os empregadores como as maiores fontes de segurança para as pessoas, não os governos”, afirma. Desde o início da pandemia, a P&G doou o equivalente a R$ 60 milhões em produtos para comunidades em situação de vulnerabilidade.

“Começamos a entender que, além de dinheiro, a gente poderia aumentar nosso impacto com ideias”, diz Juliana. A Procter criou a Aceleradora Social, uma plataforma em que pessoas, empresas e ONGs podem submeter projetos. A mais recente iniciativa da Aceleradora é o projeto "22 vozes para 2022".

O objetivo é identificar 22 jovens, entre 18 e 24 anos, com perfil de líder, e capacitá-los para que possam colocar em prática mudanças em suas comunidades via diálogo com sociedade civil, organizações privadas e formadores de opinião. “Trabalho em uma empresa onde posso crescer e fazer o bem. Meu sonho é criar mais espaços como este”.

Quais os principais desafios da P&G durante a pandemia?

Três prioridades vêm nos guiando neste período: segurança das pessoas, garantir o abastecimento e ajudar as comunidades vulneráveis. Somos 4 mil funcionários diretos. Mais ou menos 1 mil são administrativos, estão em home office. A maioria está nas fábricas. A mudança para o pessoal continuar trabalhando com segurança foi gigantesca: foram adotados mais de 20 protocolos diferentes –desde a forma como a comida é feita até como usar o vaso sanitário.

O abastecimento ganhou uma importância muito grande. É óbvio que eu sempre acompanhei ruptura [quando falta produto nas gôndolas], mas na pandemia isso ganhou outra dimensão. Foi preciso aumentar o controle sobre o nível de estoque de matérias-primas, aumentar a negociação com fornecedores, descobrir novos fornecedores. Ao longo da pandemia, houve oscilação muito forte da demanda. Teve recordes e vales. Uma cidade fecha e não se vende lá, a gente vai para o online, onde a entrega fracionada, e a variação de tamanhos é maior. Mesmo os nossos parceiros varejistas observaram oscilação forte no loja a loja.

Qual foi o problema mais agudo na questão das matérias-primas? Faltou para a embalagem?

O mundo inteiro passou a sofrer de falta de matéria-prima. Para a embalagem, em alguns casos. Mas tem um gel que vai na nossa fralda, por exemplo, que faz com que ela seja a melhor do Brasil [a empresa é dona da marca Pampers]. Só que o gel não é feito aqui, ele vem da Ásia. E para trazê-lo faltam contêineres. Hoje eu disputo contêiner até com quem embarca chips. A gente desenvolveu mais do que um departamento, foi todo um ecossistema para melhorar o nosso nível de abastecimento. Sob a liderança do vice-presidente de manufatura e logística, esta equipe vai aonde o problema está. Pode ser uma categoria, um canal, uma matéria-prima específica em que é preciso desenvolver novos fornecedores.

Houve um dado cliente em que eu e o presidente desta empresa nos envolvemos pessoalmente para tentar resolver, porque tinha de tudo: dificuldade de abastecimento do nosso produto, problema de logística do cliente, reclamação do consumidor. Para ver o nível de prioridade que o abastecimento chegou.

A P&G precisou se tornar mais ágil?

A gente não tinha agilidade para essa variável [instabilidade da demanda]. Parte das negociações de abastecimento são feitas no Brasil, parte no Panamá, que reúne pessoas centrais da área de compras e de gestão de categorias. Fomos criando esse ecossistema local para gerenciar os indicadores. O objetivo é garantir o abastecimento e reconhecer a volatilidade do mercado. Como eu consigo trazer eficiência em meio a esta nova realidade. Trouxemos nossas melhores inteligências e ainda estamos aprendendo, não está perfeito. Até porque o mercado ainda não estabilizou, tanto no Brasil quanto no exterior. Mas nossos índices de abastecimento e presença em loja estão bem melhores.

O aumento do comércio online contribuiu para essa dificuldade no abastecimento?

Desde o início da pandemia, nós avançamos muitos anos no processo de digitalização. No Brasil, um quarto da população não comprava online e passou a comprar, inclusive itens do segmento de bens de consumo, que não eram adquiridos na internet. Houve uma alta de 80% nas vendas digitais deste segmento. No digital, as grandes empresas não cresceram em índices, mas em múltiplos. E isso não vai mudar, por isso precisamos ajustar nossos estoques também para atender esta demanda. Comprar online virou uma conveniência, uma segurança para o consumidor.

Produtos da P&G passaram a estar nos mais diferentes sites, de supermercados, farmácias até varejos de eletrodomésticos. Dá para comprar Gillette no site do Magalu. É uma tendência que se acelerou.

Alguns produtos da Procter, como Gillette, costumam estar nos check-outs dos supermercados. Com a compra online, você não perde a compra por impulso?

Perde, sim. O cliente passa pelo caixa do supermercado e se lembra que precisa levar a carga do Mach3, por exemplo. Mas a compra online demanda ferramentas diferentes. Tem pop-ups, combos programados a partir da sua experiência de compra. A gente tem feito uso de dados e da ciência para tentar replicar estes comportamentos de impulso. Muito tem sido investido em pesquisa.

Com a pandemia, ficou mais difícil sentir o pulso do consumidor?

A cada ano, nós ouvimos 5 milhões de consumidores no mundo. Mesmo na pandemia, aqui no Brasil, eu falo mais com o consumidor agora do que antes. A nossa obsessão em estar próximo e tentar entender o consumidor só cresceu. Usamos muitas ferramentas online, agregamos antropólogos, usamos as mídias sociais. É o que nos garante direcionar melhor os lançamentos. Entre julho e dezembro de 2020, por exemplo, o nosso número de novos produtos foi 30% maior em relação ao ano anterior. A limpeza da casa ganhou maior protagonismo nesta fase. Lançamos, por exemplo, o Ariel 3 em 1, que lava a casa, a roupa e as superfícies, e o Downy para passar roupas e higienizar tecidos, que ajuda até quem não quer passar roupa.

O brasileiro é reconhecido como um dos consumidores que mais prezam a higiene pessoal no mundo. Como tem sido essa relação na pandemia?

Um terço da população aumentou o consumo do xampu nesse período. O brasileiro já tem uma relação intensa com o banho (mais de um por dia, média 1,5 banho diário). Com a pandemia, o banheiro virou seu espaço de recolhimento, o seu spa. Imagina uma casa em que você está trabalhando, cozinhando, tem crianças... O banheiro vira um refúgio. Eu mesma já fiz reunião do banheiro, não porque eu estava usando (risos). Mas porque tinha uma obra no meu vizinho e era o único lugar da casa onde não se ouvia o bate-estaca.

A pandemia ajudou a enraizar estes aspectos da higiene, da saúde e da beleza, que já estavam presentes. O Brasil, por exemplo, é o maior mercado do mundo em condicionador e tratamentos para cabelo. Para as consumidoras que ficaram sem salão, lançamos a máscara Pantene, porque a gente sabe que ela se cuida em casa. No Brasil, 85% das mulheres dizem que a beleza pode ser adquirida, ou seja, quase 9 a cada 10. Nos Estados Unidos, este índice está em 35%. Para as americanas, se você nasceu desse jeito, você é deste jeito e pronto.

Como você imagina o consumidor da Procter daqui 10 anos?

Nós evoluímos de uma indústria que vende só produto, para uma empresa que vende experiência, tangenciando os serviços. Pode ser de uma forma subliminar, vendendo um produto que te ajuda a desamassar a roupa, ou pode ser por meio de parcerias, como a que a marca Ariel fechou com a startup WashOut, por exemplo. É um aplicativo que reúne pessoas que querem aumentar a renda e outras que não aguentam mais lavar roupa em casa. Uma assinatura para lavagem de roupas, com os nossos produtos.

O objetivo neste caso, tanto hoje quanto no futuro, é atender o propósito do cliente: ter a roupa limpa, bonita e cheirosa no armário. Eu preciso te ajudar a conseguir isso, às vezes de diferentes formas: de uma maneira prática, ou até da maneira mais tradicional possível –alguém faça questão de esfregar roupa, por exemplo. Este cliente, que já está em todos os canais de venda, vai articular o desejo final e eu vou ter que oferecer um pacote mais completo –com produto, experiência, serviço. Preciso estar pronta também para atender uma sociedade que vai ficando mais velha e com maior consciência social.

O que te faz acreditar nesta preocupação do consumidor com o social?

A pandemia acelerou isso também. Há pouco tempo, a agência de comunicação Edelman publicou uma pesquisa [Edelman Trust Barometer] que apontava as empresas e os empregadores como as maiores fontes de segurança para as pessoas, não os governos. Neste momento em que eu não sei nada, onde eu ponho a minha confiança e de quem eu vou cobrar atitudes? O setor privado assume este papel. O consumidor se torna mais exigente quanto à responsabilidade e o propósito das empresas. A pandemia, que afetou todo mundo, mostrou que o coletivo é importante e acelerou a agenda ESG. E nossos desafios foram além do vírus: tivemos crise econômica, movimentos globais como “black lives matter” e “ageing matters”... Isso veio para ficar.

Aqui na Procter temos a agenda da cidadania. Reforçamos a equipe para capacitar as diferentes áreas para trazer ainda mais os conceitos ESG para o dia a dia da empresa. Nós nos estruturamos para aumentar o volume de doações. Desde o início da pandemia até agora, doamos R$ 60 milhões em produtos. E começamos a entender que, além de dinheiro, a gente poderia aumentar nosso impacto com ideias. Criamos a Aceleradora Social, uma plataforma em que pessoas, empresas e ONGs podem submeter projetos, que são acelerados com dinheiro, trabalho voluntário ou conexões. Fazemos ondas de captação. A primeira foi 300 projetos focados em Covid, dos quais aceleramos 30. Um deles foi reciclar lixo em uma comunidade, que também monetizava essa reciclagem, o que atendeu várias frentes ao mesmo tempo: sustentabilidade, melhoria sanitária e econômica. Agora a segunda onda trabalha a equidade e a inclusão dos empreendedores negros, em parceria com o Movimento Black Money e a Integrare.


Juliana Azevedo, 45

Formada em Engenharia Industrial na USP (Universidade de São Paulo) e, posteriormente, em Direito na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Juliana Azevedo começou na P&G como estagiária. Acumulou mais de 25 anos de experiência regional e global nas áreas de marketing, vendas, planejamento estratégico e gerenciamento, e já comandou equipes nos Estados Unidos, Genebra, Índia e China. Em fevereiro de 2018, se tornou a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da P&G Brasil. É presidente do conselho deliberativo da organização não governamental United Way e membro do conselho da Unicef desde 2019.


RAIO-X

Dados de 2020

Fundação 1837, Estados Unidos

Número de funcionários 4 mil

Faturamento global US$ 76,1 bilhões

Receita líquida Brasil* R$ 4,9 bilhões

Fábricas Louveira (SP), Manaus (AM) e Seropédica (RJ)

Principais marcas Gillette, Pampers, Always, Ariel, Downy, Pantene, Vick

Principais concorrentes Unilever, Natura, Eurofarma

*2019

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