Descrição de chapéu desigualdade de gênero

Regulamentação de cuidado com filho como atividade ganha força com pandemia

Decisão da Argentina de contar cuidado materno para aposentadoria reforça ideia de que trabalho precisa de proteção social

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São Paulo

Invisível tanto quanto essencial, o cuidado com filhos, com parentes e com a casa ganhou uma nova dimensão durante a pandemia da Covid-19, o que acelerou os debates na Argentina que culminaram com o reconhecimento dos cuidados maternos como trabalho contabilizado para a aposentadoria.

No Brasil, onde agora um projeto de lei defende medida semelhante à do país vizinho, a emergência do cuidado durante a pandemia motivou o desligamento de mulheres do mercado de trabalho.

Segundo estudo do Banco Mundial, 56% das mulheres da América Latina e do Caribe ficaram desempregadas, temporária ou permanentemente, a partir da crise sanitária –um índice 44% superior ao dos homens da região.

Ainda que parte delas tenha perdido emprego por atuar nos setores mais atingidos pela crise, como comércio e serviços domésticos, o fator mais relevante para a desproporção do desemprego de mulheres em relação a homens foi a atividade de cuidado, de acordo com o estudo.

“Jamais pensei em sair do meu emprego e ficar em casa cuidando das crianças”, admite a matemática Joana Villas Boas Mello, 41, que trabalhou no setor bancário por 13 anos e abandonou o emprego durante a pandemia.

Joana Villas Boas Mello era bancária há 13 anos na mesma empresa quando decidiu se demitir para cuidar dos filhos durante a pandemia da Covid-19 - Zanone Fraissat/Folhapress

“Esse nunca foi um plano na minha vida, mas nossa rotina na pandemia não se sustentava”, admite ela, que tem dois filhos pequenos.

Joana passou a desempenhar um tipo de trabalho não remunerado que, mesmo sendo às vezes mais exaustivo que o dia-a-dia do banco, está longe de receber reconhecimento similar. “O trabalho de casa e dos cuidados com os filhos é muito subvalorizado. Uma coisa é saber disso na teoria. Outra coisa é viver na prática.”

Foi deste lugar que ela assistiu à decisão da Argentina de contabilizar os anos de cuidado materno para a aposentadoria de mulheres que são mães.

As argentinas poderão acrescentar de um a três anos de tempo de serviço por filho que tenha nascido com vida para atingir o tempo mínimo exigido por lei para garantir o direito à previdência. Segundo o decreto, serão ainda considerados dois anos por filho adotado e será adicionado um ano para cada filho com deficiência.

A medida é alvo de debate, mas não se trata de um caso isolado. O Uruguai já havia reconhecido o trabalho materno em 2008 e permite que mulheres contabilizem um ano de tempo de serviço adicional para cada filho, até o limite de cinco anos.

E o Chile, que complementa a aposentadoria de mulheres de acordo com a quantidade de filhos, tem vivido debates intensos sobre a economia do cuidado durante sua nova constituinte.

A assembleia chilena é marcada pela paridade de gênero e as mulheres constituintes reivindicam a criação de políticas públicas para que o trabalho de cuidado não recaia desproporcionalmente sobre elas.

O Brasil é exemplo flagrante da desigualdade na divisão sexual do trabalho de cuidado. Antes da pandemia, as mulheres do país gastavam, em média, o dobro de horas semanais dos homens em trabalho não remunerado de cuidado, segundo dados de 2019 do IBGE (nstituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Durante a pandemia, 50% das mulheres brasileiras passaram a se responsabilizar pelos cuidados com alguém, segundo pesquisa da Sempre Viva Organização Feminista.

De acordo com a definição da OIT (Organização Internacional do Trabalho), o trabalho de cuidado pode ou não ser remunerado e envolve atividades diretas, como alimentar um bebê ou assistir a um doente, e indiretas, como cozinhar ou limpar.

Na pandemia, o Brasil foi um dos países em que as escolas ficaram fechadas por mais tempo no mundo. Como as normas sociais do país colocam a mulher como principal responsável pelo cuidado com os filhos, o impacto desse fechamento na vida das mães foi desproporcional.

De acordo com o Banco Mundial, ter filhos de até 5 anos pesou para a perda de emprego de mulheres muito mais do que para os homens que têm filhos nessa faixa etária. E o peso desse fator para o desemprego de mulheres se intensificou à medida que a pandemia se alongou.

“A novidade na questão da inserção das mulheres no mercado de trabalho não é apenas que elas são numerosas entre os desempregados, mas também que são mais numerosas entre aquelas que abandonaram o mercado de trabalho”, diz Lena Lavinas, professora de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo o IBGE, o país tem hoje 14,8 milhões de desempregados, entre eles quase 2 milhões de trabalhadoras domésticas, além de 6 milhões de pessoas que saíram do mercado de trabalho e não estão mais procurando emprego —situação chamada de desalento.

Estudo do Núcleo Afro do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) já havia indicado que três dos cinco setores econômicos com maior redução de postos de trabalho na pandemia (alojamento e alimentação, serviços domésticos e demais serviços) eram dominados por mulheres e por mulheres negras.

O mesmo estudo apontou ainda para o aumento, durante 2020, da proporção de mulheres que deixaram de buscar emprego por conta de atividades de cuidado. Em novembro do ano passado, 21% das mulheres em desalento informaram como causa os cuidados não-remunerados com parentes e com a casa. Entre os homens, esse percentual era de apenas 1,3%.

Trata-se de uma situação cercada de estigmas negativos.

“Trabalho desde os 17 anos, nunca fiquei sem emprego e não me ver como profissional foi muito difícil”, admite Joana, que parou de trabalhar para cuidar dos filhos. “Tive que renovar a carteira de motorista na pandemia e, quando me perguntaram minha profissão, eu travei. Simplesmente não conseguia responder”, conta.

Para a professora de sociologia da Universidade de São Paulo (USP) Nadya Araújo Guimarães, uma “construção longeva não reconhece isso como um trabalho, e o vigor dessa construção é tão grande que as próprias pessoas que fazem esse trabalho às vezes não o reconhecem como trabalho”.

Segundo ela, foram os movimentos feministas que apontaram para o cuidado como um “trabalho não pago e desigualmente distribuído, que onera as mulheres”.

“No Brasil, essa desigualdade é impactante porque ela tem uma diferença de sexo e uma diferença de cor”, aponta ela. “As mulheres trabalham mais do que os homens, mas as mulheres negras têm uma quantidade de trabalho não remunerado doméstico ainda maior.”

Ana Paula da Silva Vieira, 38, mãe-solo, ficou dez meses sem trabalho em 2020 e, há um mês, voltou a perder o emprego como porteira: "Previdência não é prioridade" - Zanone Fraissat/Folhapress

É o caso de Ana Paula da Silva Vieira, 38, que se desdobrava entre o trabalho como porteira, a manutenção da casa de três cômodos e os cuidados de mãe-solo com o filho de 5 anos até perder o emprego no mês passado.

“Sou o homem e a mulher da casa, e tudo depende só de mim”, desabafa. “Já tinha feito uma dívida antes da pandemia, que agora ficou pior. Às vezes deixo de pagar uma coisa pra poder pagar outra. O primeiro trabalho que aparecer, eu estou pegando. Não posso ficar desempregada”, preocupa-se.

Para ela, que sempre trabalhou com registro em carteira, sem trabalho não dá para pagar o INSS de maneira autônoma para garantir melhor aposentadoria no futuro. “Previdência não é minha prioridade, neste momento.”

"Numa conjuntura recessiva, com alto desemprego feminino e queda de renda das mulheres, a capacidade de contribuição para a aposentadoria é muito baixa”, diz Lena Lavinas.

“Inclusive porque, estando essas mulheres também endividadas junto ao setor financeiro, a prioridade é pagar a dívida para poder renegociá-la”.

É por conta dessa urgência que mães de crianças pequenas muitas vezes têm que o economista Naercio Menezes Filha, professor do Insper, pondera a iniciativa argentina.

“A medida é interessante, mas garante um benefício lá na frente, quando a mulher tiver por volta de 65 anos, e isso pode já ser tarde demais para beneficiar a criança, que pode ter se desenvolvido na pobreza, acumulando problemas socioemocionais e de aprendizado que vão impactar seu futuro”, diz ele, que integra o Núcleo Ciência pela Infância do Insper.

Para Menezes, é mais vantajoso para as mães ter auxílio direto e imediato por meio de uma transferência de renda no valor mínimo de R$ 400 por criança. “Seria uma espécie de Bolsa Família turbinado.”

O economista Paulo Tafner, diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, enxerga como polêmico e questionável querer corrigir, a partir da previdência, problemas decorrentes do mundo do trabalho ou da convivência social e familiar.

“É muito mais interessante criar um mecanismo assistencial para famílias em que a mulher definitivamente é privada do trabalho e de renda para cuidar de um parente. E fazer isso focalizado nas famílias mais pobres”, avalia.

No caso brasileiro, o trabalho de cuidado não tem proteção social nem benefício previdenciário.

“Trata-se de uma carga desigualmente distribuída, que pesa sobre o trabalho remunerado, diminuindo as chances da mulher de estar no mercado de trabalho, o que gera efeitos sobre os benefícios futuros”, aponta Guimarães, da USP.

Ela destaca a pandemia deu visibilidade para o trabalho do cuidado em suas diversas formas, inclusive o não-remunerado, feitos nos domicílios.

Segundo a professora, há no Brasil uma defasagem em relação a outros países quanto ao reconhecimento e a mensuração desse fenômeno.

“Só em 2016 que a Pnad passou a considerar essas atividades como trabalho. E, enquanto países como Colômbia, Argentina e Uruguai fazem pesquisas de orçamento de tempo [que permite a atribuição de um valor para esse tipo de trabalho], no Brasil isso nunca aconteceu. Medir esse fenômeno é condição para que se desenvolvam políticas públicas para ele”, afirma.

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