Barcelona enfrenta o Airbnb

Inédita em cidades da Europa, regra que proíbe locações curtas alimenta debate sobre controle de turismo

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Paige McClanahan
The New York Times

Para Lucas Ezequiel Hernández, 29, um estilista que mora com o irmão no centro de Barcelona, o verão europeu vem sendo movimentado. Em junho, ele colocou o quarto vago que tem em seu apartamento para alugar via Airbnb, e por mais de dois meses hospedou uma sucessão contínua de turistas, cobrando diárias de € 40,00 (R$ 250,25). Mas pelo final de agosto, duas semanas depois que entrou em vigor a proibição a locações de acomodações privadas por períodos curtos, ele estava reconsiderando suas opções.

“Acho que vou cancelar as reservas que tenho”, disse Hernández, acrescentando que vinha usando o dinheiro ganho com o aluguel para ajudar a lançar sua marca de moda. “Alugar o quarto via Airbnb pode me causar problemas, e por isso acho que vou parar de fazê-lo.”

A proibição, que entrou em vigor em 6 de agosto, distingue Barcelona como a única grande cidade da Europa a ter proibido locações de curto prazo de acomodações privadas, ainda que tenha autorizado que a locação de apartamentos inteiros continue —desde que o proprietário seja licenciado para isso.

A nova regra esquentou ainda mais o debate já acalorado que acontece em Barcelona sobre como apoiar a economia local e salvaguardar a qualidade de vida dos moradores depois do rápido crescimento do turismo nos 10 anos que que precederam a pandemia.

Homem jovem com camisa preta segura seu gato
Lucas Ezequiel Hernández, que recebe grupos de turistas constantemente, com o gato Tipi no apartamento em Barcelona - Samuel Aranda - 17.sep.2021/The New York Times

Os críticos se queixam de que a repressão às locações resultou em multas injustificavelmente pesadas para os anfitriões, e eliminou uma fonte de renda importante para muitos moradores. Mas o governo municipal afirma que restringir a locação privada de acomodações para turistas é um dos poucos recursos ativos de que dispõe para conter o turismo excessivo e combater os problemas de moradia da cidade.

“Estamos muito felizes por as pessoas virem a Barcelona e curtirem Barcelona, porque amamos nossa cidade e queremos compartilhá-la, mas precisamos de regras e de equilíbrio”, disse Janet Sanz, vice-prefeita de Barcelona e a principal responsável pela campanha de repressão.

“As pessoas de Barcelona ainda podem alugar um quarto por um ano para um estudante que venha do exterior”, ela acrescentou. “Mas para prazos inferiores a 31 dias, o mercado é tão difícil de regular que, daqui por diante, decidimos que é preciso pará-lo.”

O Airbnb sustenta que as locações que intermedeia não causam danos à cidade e que metade de seus anfitriões em Barcelona dependem da renda que essas locações geram para pagar suas contas e manter suas casas.

“Em Barcelona, a ausência de regras claras para os anfitriões que alugam quartos em suas casas não tem impacto sobre o nosso negócio, mas estamos preocupados com o impacto das regras da prefeitura sobre as famílias locais”, disse Patrick Robinson, vice-presidente de políticas públicas do Airbnb na Europa, Oriente Médio e África. “Estamos confiantes em que será possível trabalhar com as autoridades para descobrir um caminho melhor.

Multidão caminha em na rua de Las Ramblas, em Barcelona
Turistas caminham em Las Ramblas, rua popular no coração de Barcelona - Samuel Aranda - 17.set.2021/The New York Times

O começo do problema

Quarenta anos trás, Barcelona não estava no topo da lista de cidades obrigatórias para os turistas que iam à Europa. Mas isso mudou depois que ela sediou a Olimpíada de 1992. O enorme investimento público para embelezar a cidade coincidiu com um momento de destaque diante dos holofotes mundiais. E assim nasceu um novo “destino turístico”.

Atraídos pelos museus, restaurantes, arquitetura e pelas praias mediterrâneas da cidade, turistas chegavam de toda a Europa e de todo o mundo. Por volta de 2019, Barcelona, uma cidade de cerca de 1,6 milhão de moradores, estava registrando 21,3 milhões estadias diárias anuais, mais que o dobro do número de 2005. E isso não inclui na conta os mais de três milhões de passageiros de navios de cruzeiro que passam pelo porto da cidade a cada ano.

Quando o Airbnb chegou, em 2009, Barcelona não tinha regulamentação específica para controlar a locação de acomodações privadas a turistas, mas o interesse pelo serviço não demorou a se tornar evidente. Pela metade de 2016, havia cerca de 20 mil quartos e apartamentos privados disponíveis para locação na seção de Barcelona do Airbnb, de acordo com dados do Inside Airbnb, que acompanha as acomodações oferecidas pela empresa em cidades de todo o mundo.

Os anfitriões em Barcelona estavam operando em uma espécie de “mercado cinzento”, naqueles anos iniciais de crescimento: o que eles faziam não era explicitamente legal, mas tampouco era proibido. No entanto, com o crescimento do número de turistas, também crescia em muita gente em Barcelona a sensação de que a cidade estava chegando perto do limite de sua capacidade de receber visitantes.

No verão de 2014, irromperam protestos contra o turismo na cidade, porque cidadãos locais estavam cada vez mais frustrados com o barulho e com o comportamento efusivo de visitantes que estavam lá só para festejar.

Pichações contra o turismo irromperam por toda a cidade, algumas das quais em lugares turísticos populares, e em 2017 um grupo de ativistas de esquerda vandalizou um ônibus de dois andares e topo descoberto que circulava pela cidade cheio de turistas. Muitos moradores, e também a prefeitura, atribuíram a culpa pelos problemas ao Airbnb.

“Por muito tempo, o turismo era visto só como uma coisa positiva para a cidade, mas agora estamos começando a sentir o impacto”, disse Mar Santamaria Varas, arquiteta de Barcelona e uma das fundadoras da 300.000 Km/s, uma agência de planejamento urbano.

Com relação às acomodações turísticas, ela disse que sua análise revelou três problemas principais: aburguesamento, superlotação de espaços públicos e o desaparecimento de lojinhas locais e outras formas de varejo essencial para os moradores.

Prédios residenciais em Barcelona com a luz acesa à noite
Prédios residenciais em Barcelona - Samuel Aranda - 17.set.2021/The New York Times

O Airbnb sustenta que a locação de acomodações privadas não tem efeito sobre a disponibilidade de moradia para os residentes locais, porque as pessoas que alugam acomodações dessa maneira vivem nos mesmos imóveis.

Mas um estudo publicado no ano passado pelo Journal of Urban Economics constatou que a atividade do Airbnb em Barcelona havia resultado em uma alta de aluguéis de 7% e de preços de aquisição de imóveis residenciais em 17%, nos bairros que registram o maior nível de atividade naquela plataforma. Em um bairro médio, os efeitos são de 1,9% de aumento nos aluguéis e de 4,6% de aumento nos preços das casas.

Uma nova era

A eleição de Ada Colau em 2015 como prefeita de Barcelona representou um ponto de inflexão no relacionamento da cidade com o turismo, e deu início aos primeiros esforços reais para regulamentar as locações de curto prazo.

Já famosa na Espanha por sua luta contra o despejo de moradores, a esquerdista Colau adotou uma linha muito mais dura do que a de seu predecessor com relação ao turismo.

Sob sua liderança, a prefeitura decretou uma moratória na concessão de novas licenças para locação de apartamentos inteiros para fins de turismo; lançou uma grande campanha de repressão contra a oferta ilegal de apartamentos para locação; proibiu a construção de hotéis novos no centro da cidade e introduziu regras específicas para os bairros quanto ao estabelecimento de lojas de suvenires e outros negócios direcionados aos turistas.

Mas as mãos da cidade estavam atadas, em outras áreas. Legalmente, o governo Colau não tinha poder para revogar as cerca de 10 mil licenças de locação de apartamentos para turistas que a administração anterior havia concedido, disse a vice-prefeita Sanz.

Ao mesmo tempo, as regras governamentais que regulam o funcionamento do porto e do aeroporto de Barcelona, o maior porto para navio de cruzeiro do Mediterrâneo, ficam além do controle da prefeitura. No entanto, o chamado “compartilhamento” de casas, a locação de acomodações dentro de uma residência, continuava desregulamentada, e assim se tornou alvo de medidas de controle do turismo pela cidade.

De fato, o mercado de Barcelona havia começado a deixar para trás a locação de apartamentos inteiros e estava se concentrando na locação de quartos, no momento em que as medidas de restrição a locações ilegais começaram a ganhar força.

De acordo com dados da Inside Airbnb, o número de acomodações privadas oferecidas pela empresa em Barcelona superou o de apartamentos inteiros pela primeira vez em 2017. Até 8 de agosto daquele ano, dois dias depois da entrada em vigor da lei contra a locação de acomodações por curto períodos, 45% das mais de 16 mil ofertas do Airbnb ativas em Barcelona se referiam a acomodações privadas.

Um jornalista abordou 20 desses anfitriões para consultá-los sobre alugar um quarto em suas casas por uma semana —o que seria ilegal sob a lei em vigente —e em algumas horas metade deles tinha respondido oferecendo reservas.

Fiscalizando a aplicação das regras

Robinson, do Airbnb, disse que a empresa colaborou com o governo municipal na regulamentação das atividades em sua plataforma. Ele acrescentou que o Airbnb requer que os anfitriões aceitem permitir que certos detalhes pessoais sobre eles —entre os quais nomes, endereços e números de seus documentos de identidade —sejam revelados às autoridades, e disse que mais de sete mil pessoas que tinham violado as regras tiveram suas ofertas removidas do serviço, em colaboração com a prefeitura.

“O Airbnb sempre lembra aos anfitriões que eles devem seguir as regras locais antes de oferecer acomodações na plataforma”, disse Robinson. “Também oferecemos aos anfitriões informações claras sobre a regulamentação mais recente em vigor na Espanha."

Quanto à proibição de aluguel por curto prazo de acomodações privadas, o Airbnb questiona se a nova regulamentação não afeta também aluguel de quartos para viajantes de negócios ou outros visitantes não turísticos, e disse que era impossível para a empresa distinguir entre esses tipos de hóspedes. Mas um porta-voz da empresa disse que o Airbnb removeria da plataforma qualquer oferta de acomodações privadas que a prefeitura solicite oficialmente seja retirada.

Sanz insistiu em que não há exceções à lei, o que inclui os viajantes de negócios. Ela acrescentou que o governo municipal está recolhendo as informações de que precisa para fazer suas solicitações oficiais de retirada de ofertas de acomodações privadas.

Em termos mais amplos, disse Sanz, a maior queixa da prefeitura quanto ao Airbnb é a de que a empresa continua a permitir que anfitriões se declarem “isentos” da lei que exige que eles tenham licença de locação para turismo sem solicitar que ofereçam qualquer prova de que isso é verdade.

Ela disse que o Airbnb havia retirado ofertas ilegais de apartamentos e que algumas delas ressurgiram-na plataforma, em alguns casos apenas dias mais tarde. Ela se preocupa que o mesmo vá acontecer com relação às ofertas de quartos.

“Esse é um grande problema que temos agora, e que estamos tendo com o Airbnb já há alguns anos”, disse Sanz. Ela acrescentou que problemas como esse colocam muita pressão sobre a prefeitura, que agora gasta dois milhões de euros (cerca de US$ 12,5 milhões) ao ano para fiscalizar as locações de apartamentos pelo Airbnb e aplicar as regras da cidade sobre compartilhamento de casas e aluguel de apartamentos para turismo.

Sanz disse que a cidade descobriu que muitos anfitriões são profissionais que estão “especulando” no mercado residencial, e não indivíduos em busca de renda suplementar para cobrir suas despesas.

Dados do Inside Airbnb demonstram que, em 8 de agosto, 27% das acomodações privadas oferecidas em Barcelona constavam de carteiras com três ou mais acomodações privadas em oferta, enquanto 54% dos quartos privados eram oferecidos por anfitriões com apenas uma oferta. O Airbnb contesta esses números.

“Os dados são falhos. Os métodos usados para extração de informações públicas de nosso site e a metodologia falha levam a suposições enganosas sobre nossa comunidade”, disse um porta-voz do Airbnb. “Em 8 de agosto, 78% das acomodações privadas oferecidas em Barcelona vinham de anfitriões com apenas um quarto anunciado; 93% vinham de anfitriões com um ou dois quartos apenas.”

Os anfitriões respondem

Manel Casals, diretor geral da associação de hotéis de Barcelona, recebeu favoravelmente a proibição, afirmando que o Airbnb “é uma preocupação para cidades de todo o mundo” por privar os governos locais de impostos, desordenar áreas residenciais e não oferecer padrões adequados de saúde e segurança para os hóspedes.

“Que Barcelona proíba isso ajudará”, ele disse, acrescentando que os hotéis da cidade não consideram o Airbnb como concorrente, porque atendem a uma base de clientes diferente.

Mas anfitriões do Airbnb como Martha Ruiz ficaram decepcionados com a proibição. Ruiz, que mora perto do parque Collserola, de Barcelona, deixou de aceitar reservas para hóspedes de estadia curta depois que a proibição entrou em vigor, em agosto.

“Não sei o que eles estão fazendo, porque querem proibir”, disse Ruiz, que oferece acomodações no Airbnb desde 2017. “Eles podem regulamentar, claro, mas não proibir algo que não faz mal a pessoa alguma."

Mulher veste uma camisa branca e calças. Está em sua casa em Barcelona, na Espanha
Martha Ruiz, uma anfitriã no Airbnb desde 2017, em sua casa em Barcelona - Samuel Aranda - 17.sep.2021/The New York Times

Jose Luiz Rodriguez Fried, representante legal da Veïns i Amfitrions de Catalunya, uma associação de cerca de 500 anfitriões catalães que vem fazendo lobby junto ao governo sobre a regulamentação de moradias compartilhadas, disse que a proibição de Barcelona à locação de acomodações privadas por períodos curtos era “injustificada” e “antidemocrática”.

“O paradoxo é que temos um Legislativo municipal em Barcelona com raízes progressistas, e supostamente sensível aos problemas dos moradores e da comunidade, mas a resposta deles foi erguer uma barreira por trás de uma resposta ideológica e anticapitalista, em lugar de tirar vantagem de sistema em benefício da cidade e de seus moradores”, disse Rodriguez Fried.

“Ao alugar quartos em suas casas, essas pessoas encontraram uma maneira de pagar seus aluguéis e hipotecas”, ele disse. “Agora elas voltam a estar em risco de perder suas casas e, sejamos honestos, também sua dignidade.”

Anfitriões que violem as regras municipais correm o risco de atrair a atenção dos fiscais, e de multas com valor inicial de seis mil euros (cerca R$ 37,5 mil). Muitas multas já foram impostas. De 2016 para cá, a prefeitura iniciou mais de nove mil processos judiciais contra anfitriões que violam suas regras. Sanz disse que uma campanha de repressão à locação de acomodações privadas vai começar em breve.

As autoridades da Europas sem dúvida estarão atentas a como as coisas transcorrem em Barcelona, que integra uma associação de quase duas dúzias de cidades europeias, dentre as quais Amsterdã, Paris e Praga, que fazem lobby junto aos líderes europeus para que apoiem seus esforços de regulamentação das locações para turistas.

Se as cidades adotarem posições assim fortes contra a questão, elas podem forçar o Airbnb a cooperar, disse Daniel Guttentag, professor assistente de hospitalidade e gestão de turismo no College of Charleston, Carolina do Sul.

“Quando as cidades adotam medidas de repressão de forma mais agressiva do que o Airbnb gostaria, a empresa costuma jogar duro e contra-atacar para conseguir uma regulamentação que considere mais aceitável”, disse Guttentag.

Tradução de Paulo Migliacci

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