Descrição de chapéu Financial Times Evergrande Ásia

Analista alertou para crise da Evergrande em 2012, e foi processado pelo governo chinês

Andrew Left lucrou US$ 1,6 milhão com relatório, mas processo judicial que sofreu lhe custou mais

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Thomas Hale Tabby Kinder
Hong Kong | Financial Times

Em março de 2012, Andrew Left, um operador radicado nos Estados Unidos cuja especialidade é apostar na venda a descoberto de ações, recebeu um pacote misterioso, sem nome de remetente. Dentro dele, um documento de 68 páginas fazia afirmações explosivas sobre uma incorporadora de imóveis chinesa que, na época, era pouco conhecida fora de seu mercado de origem.

O relatório subsequente de Left sobre o Evergrande Real Estate Group, cujas ações eram cotadas na bolsa de Hong Kong, afirmava que a empresa estava “insolvente” e que seria “severamente desafiada da perspectiva da liquidez”, e lhe valeu US$ 1,6 milhão (R$ 8,549 milhões) em lucro, depois que o preço das ações da Evergrande despencou, mas também um longo processo judicial apresentado pelas autoridades regulatórias do território chinês, que terminou lhe custando muito mais dinheiro.

“Eu fui bem fundo nisso”, disse Left, que terminou condenado por disseminação de “informações falsas e enganosas” e banido dos mercados financeiros do território. “Parei de somar o valor das contas depois que elas passaram de US$ 1 milhão “.

Andrew Left, fundador da Citron Research, durante evento da Reuters em 2019, em Nova York - Brendan McDermid - 12.nov.2018/Reuters/File Photo

Esta semana, a companhia chinesa que veio a personificar as imensas dívidas que estão por trás da maior transformação urbana na história do planeta foi por fim engolfada por uma crise que os céticos vinham prevendo repetidamente ao longo dos dez últimos anos.

Na segunda-feira passada (20), o nome da Evergrande surgiu nas telas dos operadores financeiros, de Londres a Nova York, quando sua crise de liquidez, que vinha se agravando rapidamente, explodiu nos mercados internacionais nos dias que antecediam a quinta-feira (23), data em que a companhia teria de realizar pagamentos de juros sobre US$ 20 bilhões (R$ 106,858 bilhões) em títulos denominados em dólares. Até a sexta-feira, o pagamento não havia sido realizado.

Mas é o passivo total de mais de US$ 300 bilhões (R$ 1,6 trilhão) da empresa, uma quantia que ela captou principalmente dentro de seu país e acumulou ao comprar terrenos e construir edifícios de apartamentos em centenas de cidades chinesas, e vendê-los antes de completados para repetir o processo, que gerou comparações com as perturbações sistêmicas de 2008.

O destino da empresa, que de acordo coma maioria das expectativas deve requerer uma das maiores reestruturações da história chinesa, não importa o que aconteça com o pagamento de juros, emergiu na semana passada como um teste crucial para o setor imobiliário chinês, que por muito tempo ancorou o modelo de crescimento econômico do país mas agora está sob pressão para reduzir seu endividamento, depois de uma mudança nas políticas do governo.

A Evergrande foi criada em 1996 por Hui Ka Yan, que antes trabalhava no setor siderúrgico, em um ano no qual menos de um terço da população chinesa vivia em cidades. Quando a companhia abriu seu capital na bolsa de valores de Hong Kong em 2009, depois de uma tentativa frustrada anterior, suas ações subiram em 34% imediatamente. Em 2017, quando a proporção de residentes urbanos da China tinha subido a 58%, Hui foi considerado o homem mais rico do país, com uma fortuna de US$ 45 bilhões, e era conhecido por jogar pôquer com um grupo de colegas bilionários de Hong Kong.

Como muitos dos maiores conglomerados chineses, a empresa obtinha capital nos mercados de ações e títulos de Hong Kong, a principal porta de acesso ao sistema financeiro internacional, que em geral continuava fechado para as companhias chinesas. O tribunal que decidiu punir Left declarou que “a grande maioria dos analistas do mercado de Hong Kong estava otimista com relação às perspectivas da Evergrande”, em 2012. Ainda recentemente, no mês passado, quase metade dos analistas que cobrem a companhia em Hong Kong continuava a recomendar a compra de suas ações, que caíram em 84% até agora este ano.

O ritmo de crescimento de suas dívidas e de sua reserva de terrenos, do outro lado da fronteira, que no ano passado eram suficientes para alojar milhões de pessoas, continuava a causar espanto. Mas muita gente acreditava que a companhia era grande e importante o bastante para merecer apoio garantido de Pequim.

O presidente-executivo de um grupo de capital privado em Hong Kong disse que investir em incorporadoras de imóveis na China –que respondem por uma parcela considerável do mercado asiático de títulos de dívida de alto rendimento, que movimenta US$ 400 bilhões (R$ 2,137 trilhão)– era uma atividade que dependia da “crença fundamental” em que o governo central ou governos locais jamais permitiriam “uma detonação”.

Mas a crença do mercado foi abalada pela revelação da regra do governo sobre as “três linhas vermelhas”, na metade de 2020, que limitou o endividamento das incorporadoras de imóveis meses depois que um corte nas taxas de juros despertou o medo do surgimento de bolhas em alguns ativos.

“Creio que uma das coisas essenciais que as pessoas subestimaram é a mudança significativa de paradigma que o governo instigou dentro do setor imobiliário”, disse Nish Popat, codiretor da carteira de títulos empresariais de dívida em mercados emergentes da administradora de investimentos Neuberger Berman, que também ressaltou a opinião muito difundida, fora da China, de que a companhia era grande demais para falir. “Quando conversamos com nossa equipe em Xangai”, ele diz, “eles não acreditavam que fosse esse o caso”.

Em um momento no qual alguns fundos internacionais continuavam a comprar títulos de dívida da Evergrande, a Neuberger Berman liquidou sua posição na empresa, em julho, por se sentir “desconfortável”. No mesmo mês, surgiram notícias de que 132 milhões de yuan (R$ 109 milhões) em depósitos da subsidiária da Evergrande em um banco da província de Jiangsu tinham sido congelados, enquanto as autoridades locais da cidade de Shaoyang, na província de Hebei, haviam suspendido a construção de dois projetos da empresa. As duas decisões foram revertidas rapidamente, e envolviam valores pequenos, ante a dimensão geral da empresa, mas prejudicaram o sentimento do mercado.

A Evergrande alertou sobre o risco de um calote em agosto, dias depois de receber uma incomum reprimenda pública de Pequim, que ordenou que a companhia reduzisse suas dívidas, e atribuiu a situação a “relatórios negativos sobre sua liquidez”. Sob pressão das três linhas vermelhas, a Evergrande havia reduzido sua dívida de 717 bilhões de yuan (R$ 592,314 bilhões) no final do ano passado para 572 bilhões de yuan (R$ 472,529 bilhões) em junho. Mas no mesmo período, seu passivo subiu, para 1,97 trilhão de yuan (R$ 1,627 trilhão), e era 10 vezes mais alto que o nível de 2012.

Também começaram a surgir notícias sobre processos judiciais abertos por empreiteiras de todo o país contra a companhia por contas não pagas, e a Evergrande parecia estar a caminho de bater o recorde de processos contra uma empresa nos tribunais chineses, ainda que, mesmo assim, tivesse realizado lucro líquido na primeira metade do ano. As vendas de imóveis do grupo caíram quase à metade de junho até agosto, e sua expectativa era de nova deterioração das vendas em setembro, que em geral é um mês movimentado.

Embora os mercados mundiais estivessem atentos ao passivo da Evergrande, na semana passada, seus ativos também atraem escrutínio há muito tempo, dado o foco no estoque de moradias não ocupadas criado pelo boom imobiliário na China.

Nigel Stevenson, analista da GMT Research, publicou um relatório sobre a empresa em 2016 no qual previa que suas ações cairiam a zero, depois de visitar 40 projetos da Evergrande em 16 cidades. Ele apontou que a empresa tinha quase 400 mil vagas de estacionamento em seu balanço, e que elas eram avaliadas em US$ 7,5 bilhões (R$ 40,072 bilhões), uma soma praticamente equivalente à sua base de capital; e ele criticou também a qualidade de outros ativos.

“Esses ativos precisam continuar a ser financiados, e obviamente estão sendo financiados a juros de 10% ou mais ao ano, o que não é sustentável em longo prazo”, ele disse. “A realidade por fim os apanhou”.

Administradores internacionais de fundos haviam se beneficiado do alto rendimento dos títulos de dívida da Evergrande, no passado, em uma era na qual grande proporção dos títulos de dívida nos mercados mundiais estava sendo negociada com taxas de juros negativas, por conta das políticas monetárias frouxas adotadas por muitos países ocidentais.

O título com pagamento de juros vencido na quinta foi emitido com um cupom de 8,25% em 2017, e esta semana seu preço despencou para até 24% do valor de face. Em nota a clientes na semana passada, o banco UBS, que detinha US$ 300 milhões (R$ 1,6 bilhão) em títulos da Evergrande em diversos momentos de prestação de contas, entre abril e junho, afirmou que eles sendo negociados “nos, ou abaixo dos, valores históricos típicos de recuperação”.

Com o avanço das expectativas de uma reestruturação, alguns investidores internacionais estão acompanhando de perto o que acontece com os ativos da empresa fora da China, acumulados quando ela se expandiu para além do ramo imobiliário, que incluem uma participação em uma produtora de veículos elétricos com ações cotadas em Hong Kong que até agora não vendeu carro algum.

Um grupo de investidores internacionais contratou o escritório de advocacia Kirkland & Ellis e o banco de investimento Moelis & Co. como consultores para uma possível reestruturação.

“A probabilidade de que a Evergrande priorize seus credores internacionais está caindo rapidamente, e é extraordinariamente baixa”, disse John Han, advogado do escritório americano Kobre & Kim, que está conversando com diversos grandes fundos ativistas de investimento dos Estados Unidos que detêm posições em títulos de dívida da Evergrande. “O governo chinês vai priorizar os investidores de varejo, os compradores de casas e os bancos nacionais, de preferência aos fundos ocidentais prejudicados”.

A S&P, uma empresa de classificação de crédito que antecipa que um calote virá, não acredita que vá acontecer envolvimento direto do governo, mas espera que Pequim busque um “reordenamento estruturado” Na China continental, o futuro da Evergrande será um processo profundamente delicado e um teste político para o presidente Xi Jinping, dado o envolvimento de cidadãos comuns que já pagaram por seus apartamentos. A empresa tem 778 projetos em 223 cidades, e na semana passada uma multidão de pequenos investidores protestou em sua sede em Shenzhen e exigiu seu dinheiro de volta.

As consequências diretas nos mercados internacionais devem ser limitadas, para além do segmento de títulos asiáticos de alto rendimento. Mas uma quebra de alto impacto poderia prejudicar a confiança do setor imobiliário mais amplo, do qual os mercados internacionais de commodities e as finanças dos governos locais dependem pesadamente. As vendas de terrenos caíram em 90% ante os totais do mês no ano passado, em setembro, e as vendas de casas novas também registraram forte queda. Em agosto, no entanto, os preços das casas novas nas 70 maiores cidades da China continuavam a mostrar ligeira alta, ante os do período no ano anterior.

Andrew Left, que nunca visitou a China e se baseou na internet e nas declarações da empresa às autoridades para sua aposta contra a Evergrande, disse que não se sentia “ótimo”, ao acompanhar as notícias que foram surgindo na semana passada.

“Jamais estive em uma situação na qual as pessoas o congratulam por alguma coisa mas você nada ganha com isso”, ele disse. “Foi algo que se tornou uma parte grande de minha vida por muito tempo, e agora é parte da história financeira”.

Os cinco anos de exclusão de Left do mercado de Hong Kong vencem no mês que vem, mas ele continua a ter uma questão: “Os tribunais agora irão atrás dos analistas que previram que a ação chegaria aos US$ 40?”

Tradução de Paulo Migliacci

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