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Auxílio Brasil

Mesmo avariado, teto tem valor ao conter captura de recursos por grupos de interesse

Burla irresponsável deixa sequelas para a credibilidade do regime fiscal

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Paulo Miguel

Economista, é diretor da Julius Baer Family Office

Como já apontaram muitos analistas, a burla irresponsável ao teto de gastos federais inscrito na Constituição deixa sequelas para a credibilidade do regime fiscal. As consequências já visíveis são desvalorização cambial, inflação mais alta e juros de longo prazo em disparada, fatores que obrigarão o Banco Central a praticar uma política monetária mais restritiva, com impacto negativo para o crescimento e o emprego.

Se não houver novas surpresas (o risco ainda é grande) na tramitação da PEC (proposta de emenda à Constituição) que trata do tema, será aberto espaço próximo a R$ 90 bilhões para novas despesas, que incluem o Bolsa Família ampliado, as obscuras emendas de relator e outras demandas dos parlamentares.

Neste cenário, o gasto primário federal em 2022 ficará em 18,6% do PIB (Produto Interno Bruto), mais que os 17,5% do Orçamento original, mas ainda assim um pouco menos que a despesa de 2019, antes da pandemia. O déficit primário estimado para o ano que vem passa de 0,3% para 1,3% do PIB, talvez um pouco mais.

Presidente Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, ministro da Economia - Evaristo Sa - 22.out.2021/AFP

O ponto fundamental é se a conduta temerária do governo já significa o abandono total da mais importante regra fiscal que tenta trazer alguma disciplina para a gestão do Orçamento. É claro que a alteração oportunista sugere para os agentes que haverá outras, prejudicando a sinalização de controle. A restrição fiscal para todos os efeitos ficou mais fraca e o discurso do governo de que há espaço para gastar por conta da alta da arrecadação pode reinserir incentivos perversos. O resultado, se assim for, será juros de equilíbrio mais altos e aumento da carga tributária mais adiante.

Sem minimizar tais riscos, agora magnificados, o teto ainda existe formalmente e continua a ser necessário reunir maioria de três quintos nas duas casas para nova alteração constitucional, sob forte escrutínio da sociedade, o que implica custos políticos. Não convém menosprezar essa baliza, nem na prática nem no debate político que ainda envolverá o tema.

Muitos apontam, com razão, que o teto até agora não funcionou como desejado para alinhar as escolhas do Orçamento em prol dos mais pobres. Argumentam ainda que a amarra gera conflitos e tensões. Mas é esse o objetivo —expor lutas em praça pública e forçar escolhas mais transparentes do que seria o caso com uma restrição frouxa. Vale lembrar que a regressividade do gasto foi construída antes do advento do teto.

O processo é imperfeito e sujeito a retrocessos, a transparência permanece insuficiente e os sinais de compromisso político com a prudência na gestão do Orçamento vindos da base de apoio do governo e da oposição não são animadores. Porém, mesmo avariado, o teto tem valor. Cabe imaginar o contrafactual da ausência de restrição num governo como o atual. Não haveria uma percepção de ruptura súbita como a que vivemos na semana passada, que por sua vez gera forte reação contrária. A alternativa seria uma provável captura insidiosa dos recursos, que não necessariamente ficaria evidente para a sociedade até que o país chegasse, de fato, às portas da insolvência.

É verdade que nossa economia política privilegia gastos correntes e que os interesses clientelistas que dominam a alocação de recursos não estão domados. Mas não está escrito que esses grupos permanecerão vitoriosos num país que anseia por qualidade na gestão pública. A luta ainda está indefinida e também por isso um limite legal de gastos tem serventia.

Por certo há outras regras fiscais possíveis, que devem ser debatidas no próximo ciclo eleitoral. Até lá, a narrativa de que o teto já não existe só serve aos inimigos da responsabilidade fiscal, pois retira o foco do que deve ser a referência de partida para o debate.

Além de regras, há muito a fazer para consolidar uma cultura de respeito a orçamentos e foco nos que mais precisam. Árdua tarefa, condição para o avanço civilizatório e elemento constituinte de uma democracia inclusiva, que deve continuar a mobilizar as forças políticas que partilham de ideias liberais e progressistas. ​

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